ILHA 5
ILHAS EM DEVIR:
O PÓS-HUMANISMO
E SUAS VOLTAGENS
TEÓRICO-CRÍTICAS
Rita Schmidt
e Rafael Guimarães
ILHAS EM DEVIR:
O PÓS-HUMANISMO
E SUAS VOLTAGENS
TEÓRICO-CRÍTICAS
Rita Schmidt
e Rafael Guimarães
A literatura
comparada não só promoveu a ultrapassagem das fronteiras da literatura como se
tornou, na última década, um campo fértil para discussões sobre desafios
teóricos, críticos e éticos concernentes à produção de conhecimento sob as
injunções do presente e da complexidade do mundo real. Hoje, coloca-se em
questão o pensamento humanista como paradigma de conhecimento e valor calcado
nas clássicas divisões entre o eu e o outro, a mente e o corpo, a sociedade e a
natureza, o humano e o animal, o orgânico e o tecnológico. Assim, situar-se no
horizonte do pensamento pós-humanista é explorar as condições de novas
subjetividades e textualidades, com atenção às suas intensidades biológicas e
tecnológicas, aos sistemas, redes e séries, às multiplicidades e rupturas, às
superfícies virtuais e aos corpos reais que rasuram o que a tradição do
pensamento ocidental convencionou definir como normativo, normal e natural. Ou
seja, o pós-humanismo desestabiliza concepções antropocêntricas e desafia a
concepção de humano/humanidade fundada, segundo Rosi Braidotti (2013), na
suprema reivindicação de direito à ontologia. Como uma ferramenta conceitual, o
pós-humanismo permite repensar o legado de referência para o humano em um tempo
histórico de grandes avanços científicos, de experimentações e conquistas, mas
também, de profundo ceticismo diante da racionalidade científica na qual a
ciência e a técnica se colocam a serviço do capital, pelos vieses da chamada
antropotécnica (mecanismos de produção do humano), e da biopolítica (modos de
administração da vida). Nesse contexto, o pós-humanismo se configura como um
campo de inovação nos discursos disciplinares ao abrir caminhos para articular
o que não foi pensado, não foi dito, não foi teorizado, incluindo a própria
obsolescência da categoria de sujeito, tal como formulado pela tradição
ocidental. O simpósio é um convite para intervenções que contemplem, na
literatura, nas artes e nas ciências humanas, reflexão e discussão a partir de:
a dicotomia natureza x cultura e o continuum entre o dado e o
construído; relações do humano, do des-humano e do pós-humano; zoe x bios:
direitos humanos/direitos dos animais; manifestações do abjeto, do monstruoso e
do cyborg; sistemas sociais, hibridização e contaminação; subjetividades
nômades e performatividades pós-humanistas; categorias identitárias e
hierarquias de normalização, tais como gênero, sexualidade, classe, raça,
etnia, e nacionalidade; novas sociabilidades e novas materialidades;
interseccionalidades entre o corpo humano e a máquina à luz da ciência
cognitiva e da neurobiologia; estudos de animal (animal studies) e suas
contribuições no campo da teoria e crítica literária; linguagem e comunicação
trans-espécie; o fantasma da crise ecológica; o humano e o animal na
perspectiva da bioética; a literatura e a ecologia cultural; visões distópicas
e pós-utópicas; questões filosóficas em torno de valores, ética, violência, lei
e justiça.
HORÁRIOS E LOCAIS DAS COMUNICAÇÕES
I. 9 de outubro, das 11h30min
às 13h — LOCAL: SALA 208
I.1 A criação de um corpo que falta, Camila
Alexandrini
I.2 Mínimo bestiário adorniano: o Peixe n’água,
Alexandre Costi Pandolfo
I.3 Googlear para representar: o eu-lírico-ciborgue de
Angélica Freitas, Luciéle Bernardi de Souza
I.4 “Ela é amapô de carne, osso e silicone
industrial”: o gênero enquanto prótese no contexto do pós-humanismo,
Virgínea Novack Santos da Rocha
II. 9 de outubro, das 16h às
17h30min — LOCAL: SALA 217
II.1 Devires rizomáticos nas coexistências pós-humanas
em Agda, de Hilda Hilst, Jorge Alves Santana
II.2 Notas sobre uma estranha contiguidade:
animalidades na literatura mexicana contemporânea, Renata Farias de Felippe
II.3 Sexualidade e corpo feminino na literatura
portuguesa contemporânea, Paula Renata Lucas Collares Ramis
II.4 Los Topos e a reivindicação por lutos
possíveis: corpo, espectro, pós-memória e política na ficção pós-ditatorial
argentina de segunda geração, Izabel Fontes
III. 10 de outubro, das 10h às
11h30min — LOCAL: SALA 208
III.1 O (não)humano em Frankenstein, de Mary
Shelley, Thiago Leonello Andreuzzi
III.2 A binarização frente a seres pós-humanos não
genderizados: uma análise sobre o utopismo em A mão esquerda da escuridão,
Ânderson Martins Pereira e Ariane Avila Netto
III.3 A consciência pós-humana marcada pelas
delimitações contemporâneas: uma análise sobre o ser ginóide em Os deuses de
Pedra, de Jeanette Winterson, Ariane Avila Neto de Farias e Ânderson
Martins Pereira
III.4 Máquinas de fazer mundo(s): ficção científica e
fabulação maquínica, André Corrêa da Silva de Araujo e Fernando Silva e
Silva
IV. 10 de outubro, das 16h às
17h30min — LOCAL: SALA 217
IV.1 Afinal, o que é o humano? — Neo-transumanismo e o
debate do pós-antropoceno na trilogia Madd Addam, de Margaret Atwood,
Eduardo Marks de Marques
IV.2 O corpo-objeto em O conto da aia — a
desperformatização do corpo da mulher no universo distópico do romance,
Luana de Carvalho Krüger
IV.3 O conto da aia: estado de exceção e
controle dos corpos em Margaret Atwood, Mariane Pereira Rocha
IV.4 O feminino nas distopias críticas: o poder e o
controle do corpo, Caroline Valada Becker
V. 11 de outubro, das 11h30min
às 13h — LOCAL: SALA 217
V.1 A mulher e o pensamento do "humano":
textualidades fora da lei, Rita Terezinha Schmidt
V.2 Corpos em devir: o apagamento das fronteiras entre
o animal e o humano nos contos de Silvina Ocampo, Rafael Eisinger Guimarães
V.3 O processo de subjugação eurocêntrica dos sujeitos
escravizados em A ilha sob o mar, de Isabel Allende, Laissy Taynã da
Silva Barbosa
V.4 No caminho entre a utopia e a distopia: um
percurso para liberdade feminina, Elenara Walter Quinhones
RESUMOS
DAS COMUNICAÇÕES
I.
9 de outubro, das 11h30min às 13h — LOCAL:
SALA 208
I.1 A criação
de um corpo que falta (1)
Camila
Alexandrini, camilalexandrini@msn.com
Partindo das
diversas ilhas de contribuições teóricas, filosóficas e metodológicas que se
arquipelagam diante de mim, os desdobramentos da tese “Palavra-Performance”
(2017) buscam, nesse momento, criar um corpo que falta. “Temos nós o nosso
corpo? [...] O corpo é a única coisa que temos (somos?) e, no entanto, não
temos o corpo” (BARRENTO, 2015, p.13). Ao corpo da medicina, ao
corpo-organismo, a palavra-performance age propondo outras reconfigurações, evidenciando
a existência de corpos diversos, arranjados de maneiras não representadas pela
biopolítica do Estado, apartadas das tecnologias que formam um corpo em
constante contradição. A palavra-performance almeja tirá-los do anonimato, das
regras que os conduzem à disciplina diária do supostamente sadio ou saudável.
Fora isso, na evidência dessas formas corporais que se olham no espelho e não
se veem, alça a beleza que há em cada um, faz respirar o pulmão que há dentro
delas. A palavra-performance, essa ação imponderável, cujo ponto de partida e
chegada é a própria consciência desse devir-corpo, estimula que todos sejam
protagonistas do corpo que ainda não têm. A(s) máquina(s) do corpo, sua máquina
de guerra, penetra(m) os espaços públicos e privados para desnaturalizar a
virtude banal de apenas ter um corpo, considerando que todos são iguais e
igualmente entendidos. Essa virtude banal nos coloca sempre às margens do corpo
que (não) temos. Carregamos a prótese de nós mesmos e, cansados ao fim do dia,
deixamos, mais uma vez, de perceber as ações que nosso corpo (material, social,
mental e libidinal) desempenhou e, portanto, nem nos colocamos atentos, muitas
vezes, às transformações que nele se dão – a não ser quando fragilizados,
doentes ou em estado febril. A pulsão do corpo na palavra-performance salta do
que se diz sobre ele para o que se faz com e por meio dele. E no dizer não
reside apenas a palavra, assim como ação não consiste apenas em performance. O
movimento é um ritornelo: ora parte da palavra para se (des)territorializar em
outros espaços, em outras formas, ora é tido como ação para se deslocar e, quem
sabe, ser palavra (e não voltar a ser porque não se pretende o retorno
originário). E é, nesse movimento, o qual propõe indecidibilidade e
suplementaridade entre o que se diz sobre o corpo e a sua criação, que esta
proposta teórico-poética se dispõe.
I.2 Mínimo
bestiário adorniano: o Peixe n’água (2)
Alexandre Costi
Pandolfo, alexandrecostipandolfo@gmail.com
O trabalho
procura expor algumas questões a respeito da “animalidade” e da biopolítica
provocadas por determinadas imagens indeterminadas do livro Minima moralia,
de Theodor Adorno. Não se trata de trabalhar um conceito meramente disponível
na filosofia de Adorno. A sua aparência aqui está intrincada às ambiguidades
criativas de alguns outros dos mais importantes conceitos que se movimentam de
forma constelacional nos escritos do pensador frankfurtiano: sofrimento,
dominação e não-identidade, dentre outros. Mas o empenho em aponta-lo neste
trabalho imiscui-se ao empenho de montar o que já é ruína a partir de algumas
das imagens dialéticas que estão disponíveis em especial nesse livro, um livro
de fragmentos, um livro fragmentado sobre os fragmentos da vida danificada (aus
dem beschädigten Leben). Isso se apresenta, portanto, como um
corte, cujas bordas, margens ou sombras, sobras ou assombros hoje, na sociedade
bioadministrada que é a nossa, não devem ser entendidos literalmente, mas
fantasticamente. Este trabalho aponta para três bestas encontradas dentre esses
fragmentos, descritas em determinados momentos da coleção de fragmentos
danificados, mas escolhe uma para apresentar; com isso, procura deixar aparecer
alguns motes e algumas modulações do conteúdo biopolítico da linguagem
adorniana. As bestas são o Peixe n’água, o Gato por lebre e o Mamute. A
presente proposta de comunicação foca no Peixe n’água. Em questão estão as
relações humanas-desumanas-pós-humanas, a linguagem identificada à comunicação
e da mesma forma o jogo com o abjeto. O mínimo bestiário adorniano aqui trazido
à tona demonstra, nos desdobramentos mais recentes das suas figuras, coincidir
com os cacos do capitalismo tardio, historicamente assentado à maníaca visão do
ser-aí em seu empreendimento sobre o outro, contra o outro material, hoje
tecnicamente planejado e executável. A racionalidade instrumental, o
positivismo lógico, o idealismo e o humanismo em todas as suas variantes
edificaram a fatalidade artificial na qual há séculos vem sendo fabricado não
apenas “o homem” sujeito-objeto corpo-entregue numa existência
incomensuravelmente aterrorizante, mas, principalmente, o estado e a sociedade
e o “natural” sendo historicamente fabricados através da expansão de uma
linguagem, micro e macrológica, que socialmente responde pelo nome de segunda
natureza – que está para muito além da natureza perdida. Este trabalho trata
sobre isso. Uma tentativa de leitura bestial em torno à crítica da ontologia
fundamental sem resolver ou desfazer os nós persistentes à ambiguidade das
imagens evocadas desde o âmago da linguagem adorniana.
I.3 Googlear
para representar: o eu-lírico-ciborgue de Angélica Freitas (3)
Luciéle Bernardi
de Souza, lucielebernardi@gmail.com
Este escrito é
uma reflexão sobre a relação estabelecida entre o homem e a máquina (ou
homem-máquina) na constituição do fazer literário. Para isso, parto da seguinte
pergunta: Poderia a máquina ser um elemento propulsor, participativo e efetivo
na conformação da obra de arte? O poema Três poemas com auxílio do Google,
da poeta Angélica Freitas, foi que suscitou tal pergunta e posterior reflexão,
pois a autora valeu-se do “oráculo do século XXI” para não suscitar dúvidas
quanto à capacidade de criação e de representação que pode advir de um eu-lírico-ciborgue.
Minha reflexão também buscou compreender o fluxo entre duas entidades,
conformador deste eu-lírico híbrido, importante na medida em que leva-nos a
pensar sobre uma característica essencialmente humana: a sensibilidade e a
capacidade de se criar representações, de expressar o mundo e plasmar o momento
histórico-social e tecnológico no qual estamos inseridos. Pensei o fazer
literário enquanto uma representação que problematiza a identidade, a
sensibilidade e a representação do humano através deste singular processo de
criação literária, fruto de uma sensibilidade que permeia o mundo
contemporâneo. Angélica Freitas elabora, portanto, de maneira interessante e
muito atual, uma arte politizada e subjetiva, resultado da expressão de uma
nova ordem sensível que, todavia, ainda estamos em processo de compreensão.
I.4 “Ela é
amapô de carne, osso e silicone industrial”: o gênero enquanto prótese no
contexto do pós-humanismo (4)
Virgínea Novack
Santos da Rocha, novack.virginea@gmail.com
A literatura
nunca aconteceu isolada do mundo, mas nas últimas décadas parece cada vez mais
carregada de subjetividades. No entanto, diferentemente do que se estava
acostumado até então, as subjetividades que emergem são as mais variadas:
autoria, narração e personagens plurais. Nesse sentido, pode-se afirmar que o
humanismo de certa forma não dá mais conta de pensar o sujeito a partir de uma
ontologia única e singular, o que gera uma problemática conceitual e nos leva
ao pós-humanismo. Dessa forma, a partir desse novo paradigma que se instaura,
os clássicos e mais rígidos limiares entre o eu e o Outro; natureza e cultura;
orgânico e inorgânico ou tecnológico flexibilizam-se, sendo, portanto, nesse
sentido que as Teorias Feministas interseccionam-se com essas novas concepções
de sujeito, ressituando o debate sobre as mulheres na questão do corpo, isto é,
no corpo da mulher. Assim, o corpo da mulher, silenciado e violentado,
historicamente marcado como Outro do homem, dentro de uma estrutura
falocêntrica em que o falo se contrapõe a ausência do falo, representado
materialmente pelo pênis, carece de reflexão quando o corpo da mulher é aquele
que possui o falo-pênis-pau, como canta Linn da Quebrada “Ela tem cara de
mulher/ Ela tem corpo de mulher/ Ela tem jeito/ Tem bunda/ Tem peito/ E o pau
de mulher!”. A genitália (pênis/vagina) em nossa cultura, como se sabe, é o
grande marcador do gênero, embora algumas outras partes do corpo (materiais ou
virtuais) possam significar o gênero também. Nesse sentido, Paul B. Preciado, a
partir de reflexões prévias de Teresa de Lauretis e Donna Haraway, é precisa/o
ao eleger o dildo como ocupante de “um lugar estratégico entre o falo e o
pênis. Ele atua como um filtro e denuncia a pretensão do pênis de se fazer
passar pelo falo.” (p.75), situando toda a questão das discussões de gênero não
entre a organicidade e a plasticidade (o gênero orgânico ou o gênero
plástico/artificial/falso), mas em algum ponto entre esses dois aspectos, que
nos leva a compreender todos os corpos como corpos pré-op, implodindo,
assim, o gênero enquanto uma tecnologia binária de poder.
II.
9 de outubro, das 16h às 17h30min — LOCAL:
SALA 217
II.1 Devires
rizomáticos nas coexistências pós-humanas em Agda, de Hilda Hilst
(5)
Jorge Alves
Santana, jorgeufg@bol.com.br
“Alguém lhe
toca, minha senhora? Mil perdões, senhora, não quis dizer, luvas quem sabe,
ajudariam? Mil perdões, senhora, não quis dizer, enfim quero dizer que para
revitalizar essa espécie de flacidez, assim na sua idade, cincoenta? Cincoenta
e cinco?” (Agda. Hilda HILST, 2002.) Dessa forma se inicia o conto Agda
da narrativa homônima que abre a coletânea Kadosh (2002), de Hilda
Hilst. Um médico perfaz certa anamnese sobre o estado corporal de uma mulher
que beira à velhice. Pretendemos analisar tal narrativa na perspectiva de
compreender mais essa mulher ficcionalizada/experenciada por Hilst, que
vivencia o processo de envelhecimento, a instalação precoce da velhice e o
corolário psicossocial que disso surge. Ela nos é apresentada por/em uma
discursividade rizomática entre/com prosa e poesia disposta em fluxos que
tentam apreender e minimizar a ação de seu socius normalizador,
carregado de dispositivos repressores e conformadores de identidades fixas. Nas
sensações, instintos, relações coexistenciais e experimentações do corpo
feminino vigiado, normatizado e bloqueado, Agda imerge nas potencialidades
deslocadoras do reino animal, do vegetal e do mineral que passam a ser sentidos
como fontes energéticas capazes de recriarem novos universos existenciais que possam
ir ao encontro de sua condição intrinsecamente heterogênea, múltipla e
conectada. Essa personagem, das mais instigantes compostas por Hilst,
apresenta-se no campo biografemático (a personagem denota poeticamente várias
características psicossociais empíricas e imaginárias da autora), no qual
podemos acompanhar os devires intensos (DELEUZE; GUATTARI: 1997) presentes nos
desdobramentos diegéticos, bem como a concretização de um paradigma estético
apoiado nas três ecologias: a ambiental, a social e a mental (GUATTARI: 1992;
1990). Assim, tentaremos acompanhar as posições provisórias de Agda nos seus
movimentos subjetivos que são diversos e nômades (BRAIDOTTI, 2002). Construção
de personagem essa que nos aponta as hibridizações entre corpos humanos e corporidades
já pós-humanas nos contextos de lugares psicossociais nos quais as fronteiras
identitárias, femininas e/ou de gêneros historicizados e, portanto,
culturalizados, já não são experimentadas de modo essencialmente estanques
(BUTLER, 2002; IRIGARAY, 2002). Dessa forma, pretendemos compreender como
estratégias literárias de nossa contemporaneidade esforçam-se por
representar/expressar existencialidades no campo do pós-humano, bem como a
relevância de tais dispositivos estéticos para nossas realidades pragmáticas.
II.2 Notas
sobre uma estranha contiguidade: animalidades na literatura mexicana
contemporânea (6)
Renata Farias de
Felippe, renafelippe@yahoo.com.br
A denominada
“virada animal” incidente sobre as práticas estéticas recentes, espécie de
resposta aos “fluxos desumanizantes do neoliberalismo contemporâneo”
(GARRAMUÑO, 2011, p. 114), chama a atenção não só para os modos de
responsabilidade humana em relação às demais espécies viventes, como colabora
para a formulação de “novas virtualidades do inumano e de suas comunidades
possíveis” (ibidem). Atentas a tais potencialidades, vozes da literatura atual
– sejam elas consagradas, como as de J.M. Coetzee e de Mario Bellatin, sejam
ficções em crescente visibilidade, como as produções de Guadalupe Nettel e de
Joca Reiners Terron -, têm chamado a atenção para a “estranha familiaridade”
entre animais humanos e não-humanos, estreitamento que abala preceitos
humanistas e que oferece uma perspectiva relevante para a discussão das
alteridades. Os questionamentos decorrentes dessa contiguidade oferecem
perspectivas estratégicas para se (re)pensar as produções literárias de países
que lidam, simultaneamente, com as marcas do passado colonial e com os efeitos
do atual neoliberalismo. Considerados esses elementos, o objetivo desse
trabalho é o de discutir a questão da animalidade como uma espécie de chave de
leitura capaz de oferecer novos ângulos analíticos voltados para problemáticas
reincidentes na literatura hispano-americana atual, mais especificamente, na
literatura mexicana contemporânea. O desenvolvimento dessa análise terá a
novela Salón de belleza (1994), de Mario Bellatin, e o conto “Guerra en
los basureros” (2013), de Guadalupe Nettel, como referências ficcionais,
narrativas que redimensionam a problemática das tensões sociais e de gênero ao
atentarem para as questões da outridade animal e do abjeto. Nas narrativas em
questão, animais humanos e não-humanos partilham vulnerabilidades, mas também
uma “energia bruta, irracional e despojada de toda a ilusão redentora” (ibidem,
p. 107), proximidades que ressignificam as noções de empatia e que estreitam
alteridades.
II.3 Sexualidade
e corpo feminino na literatura portuguesa contemporânea (7)
Paula Renata
Lucas Collares Ramis, paulacollares123@hotmail.com
Pierre Bourdieu,
em A dominação masculina, analisa os pressupostos de nossa sociedade
androcêntrica que legitima a dominação masculina e observa a mulher como objeto
simbólico. A relação sexual entre homens e mulheres mostra muito bem
determinada organização social: “Se a relação sexual se mostra como uma relação
social de dominação, é porque ela está construída através do princípio de
divisão fundamental entre o masculino, ativo, e o feminino, passivo, e porque
este princípio cria, organiza, expressa e dirige o desejo — o desejo masculino
como desejo de posse, como dominação erotizada, e o desejo feminino como desejo
da dominação masculina, como subordinação erotizada, ou mesmo, em última
instância, como reconhecimento erotizado da dominação” (BORDIEU, 2005, p.31).
Por muito tempo, a mulher na literatura foi representada como uma projeção dos
desejos masculinos, sendo o desejo feminino visto como tabu. Na literatura
contemporânea portuguesa de autoria feminina percebe-se que muitas vezes as
questões referentes ao corpo (e suas representações) são utilizadas para
discutir todo um arcabouço cultural, político e social. Em vários momentos, as
mulheres retratadas nas obras problematizam, por um lado, os valores de uma
sociedade patriarcal, contudo também percebe-se que seus comportamentos
reproduzem certos valores dessa ideologia. Esse trabalho pretende analisar a
representação do corpo feminino e da sexualidade em três autoras de literatura
portuguesa contemporânea. A partir dos romances Ema (1984), Os Meus
Sentimentos (2005) e O Meu Amante de Domingo (2014), de Maria Teresa
Horta, Dulce Maria Cardoso e Alexandra Lucas Coelho, respectivamente, deseja-se
analisar o corpo e a sexualidade feminina como lugar de poder e de opressão.
Ema, enclausurada e silenciada, tem seus pequenos momentos de libertação
quando, após ser violada pelo marido, tranca-se no banheiro e vai em busca do
seu próprio prazer. Violeta, personagem de Cardoso, quer sentir o amor e por
isso tornou-se uma mulher ávida por qualquer migalha, sendo capaz de ter
relações sexuais com desconhecidos em banheiros de beira de estrada. Já a
personagem de Alexandra Coelho é uma mulher que compra preservativos e muitas
vezes mostra que quer apenas satisfazer os seus desejos sexuais.
II.4 Los
Topos e a reivindicação por lutos possíveis: corpo, espectro, pós-memória e
política na ficção pós-ditatorial argentina de segunda geração (8)
Izabel Fontes, fontesizabel@gmail.com
Nesta
apresentação, buscarei uma aproximação a Los Topos (2008), romance de
estreia do escritor argentino Félix Bruzzone. Filho de desaparecidos políticos
da última ditadura militar no país, Bruzzone revisita os anos de violência e a
sua história familiar através da mistura de uma narrativa autobiográfica com
elementos ficcionais. No entanto, o texto de Bruzzone pode ser visto como um
ponto de fuga dentro do fenômeno surgido nos anos 2000 e que se convencionou
chamar de literatura autoficcional de segunda geração, afastando-se da busca
identitária e da gravidade memorialística que caracterizam autores como Laura
Alcoba, Martín Kohan, Samantha Schwebelin ou Andrés Neuman. Fazendo uso do
humor, do absurdo e da paródia, o autor opera um desmonte da própria
identidade e dos processos políticos de memória, questionando não somente seu
papel social como órfão da ditadura, mas também o trabalho de luto e o dever de
rememoração que marcam a sociedade argentina, ressaltando que ambos são
processos políticos excludentes e normativos. Esse questionamento aparece no
texto através do desmonte do próprio narrador, que, ao iniciar uma investigação
há muito evitada acerca da história do seus pais, começa a afastar-se de seus
lugares de identidade: casa, cidade, círculo social, razão, gênero e, por fim,
de seu próprio corpo, reivindicando novos lugares de luto e apontando que
dentro dos lugares oficiais da memória não existe lugar para vidas dissidentes
e existências que fogem do padrão. Essa falta de lugar está materializada no
texto de Bruzzone dentro da emblemática figura do desaparecido político e das
movimentações sociais que giram ao seu redor. Visto como o maior dos símbolos
da violência estatal da ditadura argentina, o desaparecido pode ser encarado
como uma espécie de espectro que nunca pode abandonar a terra, já que é um
fantasma sem corpo, produto de uma morte apenas ficcional que condena aqueles
que ficaram a um luto impossível e irrealizável. Acima de tudo, o desaparecido
apaga as fronteiras entre o mundo dos vivos e dos mortos, entre o humano e o
não-humano, desestabilizando as políticas da vida que regem estas esferas. Em Los
Topos, a temática do desaparecido político é vista como metáfora, sendo
reatualizada para os anos 2000 através da exposição de outras formas de
desaparecimento menos célebres – mais especificamente, o desaparecimento
resultante não da perseguição política, mas da invisibilidade da exclusão
social (seja ela econômica, política ou cultural). Para realizar uma
aproximação às atualizações do lugar do desaparecimento nos discursos de
memória da sociedade argentina pós-ditatorial em contraponto à obra de
Bruzzone, resgatarei alguns conceitos da biopolítica do luto como proposto por
Judith Butler em Frames of war (2009) e algumas inquietações lançadas
por Fabián Ludueña Romandini sobre o lugar do espectro na sociedade moderna em
seu A comunidade dos espectros (2012).
III.
10 de outubro, das 10h às 11h30min — LOCAL: SALA 208
III.1 O
(não)humano em Frankenstein, de Mary Shelley (9)
Thiago Leonello
Andreuzzi, thiago.literato@gmail.com
Analisando a
obra Frankenstein, de Mary Shelley, busca-se compreender a crítica de um
padrão racionalista e eurocêntrico de interpretação do mundo, em auge no século
XIX, bem como sua relação com o contexto sócio-cultural pós revoluções francesa
e industrial. Para tanto, será levado em consideração os critérios de
construção do(s) monstro(s) formulado pela literatura gótica em língua inglesa,
tais quais os critérios étnicos, físicos e estéticos de grupos
não-estabelecidos – sobretudo na capital do Império Britânico, no século XIX –
em que o confronto étnico-social é agravado e vem à tona através do progresso e
discurso científicos. Através da figura do monstro, busca-se compreender as
discussões entre natureza, artificial e sobrenatural, discurso político e
literatura, discurso científico e normatização de preconceitos, na formação
e/ou apropriação do monstro, visto como um counterfeit (significado
próximo ao de cópia-falsa) de um humano. Sendo assim, será explorado como a
figura do monstro e seu antagonista e criador servem para levantar a discussão
acerca do que pode ser considerado humano (e o porquê disto), bem como um aviso
ao avanço científico desprovido da ponderação sobre suas consequências –
problemas esses que foram apropriados pelo discurso dominante, sobretudo no que
se refere às ideias políticas. Por fim, vê-se como o monstro, negado pela
sociedade, ainda é possuidor de uma natureza, mesmo que tenha uma origem
artificial: seu desenvolvimento se dá nos termos dos postulados de Locke,
através da teoria da “tábula rasa”, em que o indivíduo só se desenvolve através
das experiências vividas (das quais as sensoriais são as primeiras), e de
Rousseau, no que se refere à teoria do “bom selvagem”, constantemente
invocada pelo monstro para defender sua inocência antes do contato com a sociedade
humana – e esse conflito se reflete na história que narra e a imersão na vida
social, posta na busca de uma companheira e um local para viver entre os da sua
espécie.
III.2 A
binarização frente a seres pós-humanos não genderizados: uma análise sobre o
utopismo em A mão esquerda da escuridão (10)
Ânderson Martins
Pereira e Ariane Avila Netto, andersonmartinsp@gmail.com;
arianeaneto@hotmail.com
Nas utopias, o
social é problematizado a partir de um ideal de sociedade. Neste viés, a obra
de ficção cientifica A mão esquerda da escuridão, escrita por Ursula le
Guin, não retrata exatamente um ideal social, mas, através da criação de um
mundo no qual convenções binárias de gênero não existem, insere a si um
subtexto utópico. A partir da definição de utopismo de Lymar – a qual abrange
posicionamentos idealistas, sejam eles relacionados ao sonho ou ao pesadelo –
pode-se observar que a obra traz um grande ideal acerca da temática do gênero
utopia e escolhe explorá-la pela diferença, pois a narrativa é perpassada por
seres que apresentam simultaneamente características biológicas e identitárias
masculinas e femininas. A obra, publicada originalmente em 1969, traz
discussões ainda vigentes sobre o ser genderizado e sua sexualidade. Desta
forma, objetiva-se com esta pesquisa discutir a relação entre os gêneros na
obra e refletir em que medida esta representa um ideal utópico. Além disso,
pretende-se traçar paralelos entre estes seres pós-humanos e o viajante, o qual
se relaciona e problematiza as questões do estrangeiro humano, masculino e
negro que começa a viver no planeta inverno. O foco neste personagem
justifica-se na medida em que ele, ao mesmo tempo em que estabelece com o
leitor uma conexão com o desconhecido, discute o fluído de uma forma mais
familiar a nossa sociedade e não pouco preconceituosa. A problemática do social
se dá no entendimento, não só do personagem terráqueo, mas também a partir de
seres pós-humanos que já superaram as desigualdades de gênero. Contudo, estes
seres, ainda que de certa forma mais evoluídos, são idealizados a partir de
problemáticas vigentes. Tal pensamento se ancora no texto introdutório à obra
feito pela própria autora que pontua: “A ficção cientifica não prevê; descreve”
(LE GUIN, 2014, p.8). Assim, a obra é, também, uma grande metáfora para as
relações de gênero e é a partir desta premissa que se pretende discutir o ideal
utopista das relações no texto.
III.3 A
consciência pós-humana marcada pelas delimitações contemporâneas: uma análise
sobre o ser ginóide em Os deuses de Pedra, de Jeanette Winterson
(11)
Ariane Avila
Neto de Farias e Ânderson Martins Pereira, arianeaneto@hotmail.com;
andersonmartinsp@gmail.com
Correntes
filosóficas que desafiam a relação do humano com o seu corpo emergem na
contemporaneidade, dentre elas pode-se citar o transumanismo e o pós-humanismo,
falando respectivamente sobre a evolução da espécie ou disseminação da
consciência e razão como algo que transcende o humano. Sobre este viés, a
literatura, em especial a ficção cientifica, tem contribuído para a idealização
de sociedades futurísticas, nas quais estes seres já existem. Contudo, esses
personagens, ainda que desafiem a fronteira proposta pelo humanismo, são
idealizados à maneira contemporânea e possuem traços deste tempo. Dentre estas
características, cabe salientar as questões de gênero que perpassam tais seres,
relacionando-os, na aparência e nos papéis sociais que ocupam, aos gêneros e
papéis binários experienciados ainda na atualidade. Sob este viés, este
trabalho busca analisar a representação da ginóide Spike na obra Deuses de
Pedra (2012), de Jeanette Winterson. Buscar-se-á refletir sobre como a
apresentação física e morfológica do feminino se dá na personagem e como essas
características a obrigam a ocupar determinados espaços dentro da sociedade.
Nesse sentido, a orientação sexual da robô também será destacada, visto que
esta é obrigada a uma vivência heterossexual, mesmo que mantenha também
relações lésbicas com consentimento próprio. Desta forma, planeja-se refletir
sobre a forma que a sociedade atual prevê as relações interespécies e as
possíveis repetições de cerceamentos e delimitações genderizados presentes na
sociedade atual. Para tal discussão, partir-se-á dos aportes de Francis Fukuyama (2002)
no livro Our Posthuman Future: Consequences of the Biotechnology Revolution,
para questionar o quão o futuro está atrelado as delimitações feitas pelo
presente. Além disso, para se pensar nas questões de gênero levantadas pela
personagem, pretende-se utilizar as contribuições de Teresa de Lauretis em seu
texto, Tecnologia de Gênero (1994). As reflexões da autora são
importantes para o entendimento de que os gêneros são entendidos como
produzidos por uma tecnologia formadora de discursos que se apoiam em
instituições como a família e a escola, aí sendo criadas as categorias homem e
mulher para todas as pessoas.
III.4 Máquinas
de fazer mundo(s): ficção científica e fabulação maquínica (12)
André Corrêa da
Silva de Araujo e Fernando Silva e Silva, andrecsaraujo@gmail.com;
fernandosesilva@gmail.com
Ao abordar a
obra de Kafka, Deleuze e Guattari propõem que seus textos sejam compreendidos
como ‘máquinas de escrita’. De acordo com eles, um romance, para além de seu
caráter interpretativo ou simbólico, tem a capacidade de agir diretamente na
formação maquínica da realidade. Um texto literário não existe meramente como
representação, em uma esfera ontologicamente separada de outras entidades como
árvores, partidos políticos ou furacões. É uma máquina entre outras máquinas,
cujo funcionamento diz respeito à distribuição, organização, acoplamento e
desacoplamento maquínicos. Como afirmam os filósofos, escrever tem uma dupla
função: a de traduzir tudo em agenciamentos e desfazê-los. E ambos os gestos são
o mesmo. A partir dessa provocação, o presente trabalho questiona-se sobre
o caráter maquínico da literatura de ficção-científica produzida
contemporaneamente, que parece estar engajada em fazer e desfazer certos tipos
de territórios existenciais. Um tipo de literatura aberta a experimentar
especulativamente quais os possíveis arranjos que podem emergir a partir da
dissolução e reorganização de antigas fronteiras, entre humano e não-humano,
vida e não-vida, indivíduo e sociedade, ciência e outras produções de verdade,
natureza e cultura. Devido a sua tradição de experimentação com categorias
subjetivas, espaciais e temporais, a ficção científica é historicamente um
espaço fértil para esse tipo de fabulação. Nas últimas décadas,
auto-conscientes do poder do texto literário em afetar as formas coletivas de
organização, diversos autores, como Jeff VanderMeer, Octavia Butler e Ursula Le
Guin, têm produzido obras em confronto explícito com o estado das coisas, sem,
no entanto, recorrer a um denuncismo do tipo realista. Levando em conta os
pontos acima, neste trabalho, primeiramente, apresentamos a concepção maquínica
do texto literário. Em seguida, apontamos o caráter peculiar de certa
ficção-científica contemporânea e seu papel em fazer-nos vislumbrar outros
modos de existência. Finalmente, nos focamos na produção literária de alguns
autores estadunidenses, em sua maioria ainda vivos, e analisamos suas
contribuições para, a partir de sua escrita, refazer aquilo que tomamos como
dado.
IV.
10 de outubro, das 16h às 17h30min — LOCAL: SALA 217
IV.1 Afinal,
o que é o humano? – Neo-transumanismo e o debate do pós-antropoceno na trilogia
Madd Addam, de Margaret Atwood (13)
Eduardo Marks de
Marques, eduardo.marks@mandic.com.br
Geralmente lida
como um exemplo de ficção (especulativa) distópica contemporânea, a trilogia
MaddAddam (Oryx & Crake, O Ano do Dilúvio e MaddAddam, este
último ainda sem tradução para o português), da escritora canadense Margaret
Atwood, é também um bom exemplo dos debates complexos envolvendo as tensões das
filosofias pós-humana e transumana (definidas a partir de pensadores como Cary
Wolfe, Max More e Natasha Vita-More) e daquelas acerca da noção contemporânea
de antropoceno (conforme discutidas por Francesca Ferando e Gilsi Palsson et
al). O universo criado nos romances, uma resposta ao ritmo desenfreado do
capitalismo tecnológico tardio e da relação do humano com o ambiente, com a
tecnologia e consigo mesmo, pode ser visto superficialmente como pós-apocalíptico.
No entanto, uma leitura mais cuidadosa nos permite verificar que o debate é
ainda mais profundo do que aquele acerca das definições basilares dos preceitos
críticos expostos anteriormente. A presente comunicação almeja discutir como os
romances pós-apocalípticos de Atwood podem, na verdade, ser entendidos como uma
tentativa de minar – e, também, de problematizar – o que pretendem os projetos
pós-humanos do capitalismo tecnológico e como pode ser possível (se é que pode)
desenvolver um entendimento de um Antropoceno pós-humano através da criação dos
Crakers, hominídeos geneticamente desenvolvidos para repovoar o planeta após a
pandemia denominada Dilúvio Seco.
IV.2 O
corpo-objeto em O conto da aia – a desperformatização do corpo da mulher
no universo distópico do romance (14)
Luana de
Carvalho Krüger, luana-kruger@hotmail.com
O conto da aia (1985), de
Margaret Atwood, é um romance distópico que apresenta uma teocracia totalitária
que assume o poder nos Estados Unidos em um período em que a fertilidade humana
está comprometida. Nesse cenário, as mulheres são divididas em diferentes
castas, tendo seus direitos e deveres delimitados aos seus papéis sociais. Uma
dessas castas são as aias, mulheres que supostamente são férteis e que são
designadas a diferentes casas de homens ligados ao governo para, uma vez ao
mês, manterem relações sexuais com ele na tentativa de gerar um filho para
aquela família. No romance, as aias são cuidadas e mantidas sob observação em
um ambiente onde o cuidado com o corpo torna-se fundamental, no entanto, não há
o reconhecimento desse corpo como sujeito, ou seja, as aias são um corpo-objeto
que deve ser conservado, mas, quando atingido o objetivo, pode ser descartado.
De acordo com Marisa Mello de Lima (2013), os estudos acerca do corpo na
contemporaneidade observam-no como vetor das manifestações performáticas do
sujeito. O corpo ganha espaço para além de sua funcionalidade, de modo que as
influências de imagem, escolhas e construção social colocam o corpo no foco de
uma performatividade que está diretamente ligada à posição do sujeito na
sociedade. Nessa perspectiva, observa-se que em O conto da aia, embora
haja uma valorização do corpo, o sujeito-mulher é anulado na casca das aias,
colocando-as como objetos reprodutivos e descartáveis em circunstâncias
adversas ao esperado socialmente. Logo, a performance de sujeito-mulher e
mulher-mãe é anulada, enfatizando a manutenção dos corpos a partir da
desperformatização do sujeito, ou seja, anulação do corpo como espaço
performático dos sujeitos, para o desempenho de uma ‘performance-objeto’. Nesse
trabalho, pretendemos discutir a importância do corpo nas discussões de
performance e reconhecimento de sujeito a partir da ausência imposta pelas aias
e subversão de algumas personagens do romance.
IV.3 O
conto da aia: estado de exceção e controle dos corpos em Margaret Atwood
(15)
Mariane Pereira
Rocha, marianep.rocha@gmail.com
Em O conto da
aia, escrito por Margaret Atwood e publicado em 1985, encontramos uma nova
realidade, na qual as mulheres não têm mais direitos: suas contas bancárias
foram congeladas e relegadas aos familiares homens mais próximos, elas não
podem mais trabalhar e foram divididas em castas, sendo que as “aias” cumprem a
função reprodutora de dar filhos aos comandantes mais poderosos e ricos de
Gilead, uma vez que a taxa de natalidade do país caiu drasticamente em função
da degradação do meio ambiente. Entendendo que nessa sociedade distópica um estado
de exceção foi instaurado, visto que a nova organização feita pelos
soberanos foi implementada dentro das leis do país, será analisada neste
trabalho de que forma as mulheres se tornam o que Agamben (2010) definiu como Homo
sacer, vidas que são insacrificáveis mas, ao mesmo tempo, matáveis, tendo
sua vida política (bios) reduzida à animalização e objetificação (zoe), já que
são designadas, nas palavras de Offred, protagonista e narradora desse
romance, como “pertences da casa”, a elas não sendo permitido nenhuma atuação
política na sociedade. Aliado a isso, discute-se em quais condições a
organização do poder sobre a vida baseada no controle dos corpos (Foucault,
1988) se apresenta nesta narrativa, para entender de que forma as personagens
mulheres são controladas pelo Estado e até que ponto elas conseguem contornar
esse controle, entendendo aqui questões como o suicídio e o aborto como uma
retomada do poder sobre si e um exemplo de profanação dos corpos. Para essa
análise serão selecionados trechos que mostram como era a vida das mulheres
antes e depois do novo regime, comparando esses dois momentos distintos a fim
de entender a docilização dos corpos antes – quando as mulheres tinham os
mesmos direitos que os homens na sociedade, porém sofriam violências diárias em
suas casas e na rua – e agora – onde o Estado controla suas vidas, mas elas têm
uma falsa sensação de proteção, já que, pela propaganda estatal, o número de
estupros e a violência contra as mulheres foram reduzidos a zero.
IV.4 O
feminino nas distopias críticas: o poder e o controle do corpo (16)
Caroline Valada Becker,
carol.valada@hotmail.com
A palavra
distopia, nos últimos anos – especificamente no fechamento da primeira década
do século XXI – tornou-se frequente. Usado para descrever nossos tempos, o
adjetivo “distópico” explica nossas relações sociais e nossa percepção tanto do
tempo presente quanto do tempo futuro. Contudo, não apenas no mundo empírico, o
distopismo faz-se presente; a arte – cinema, séries de televisão e literatura –
revisita a história das distopias clássicas e críticas, ressignificando o que
compreendemos por um mundo (neste caso, ficcional) dilacerado por governos
autoritários, pela presença de cenários pós-apocalípticos e pela manipulação de
grandes corporações. Diante desse cenário artístico ancorado na intertextualidade,
transtextualidade e releitura (conceitos essenciais para Linda Houtcheon,
Antoine Compgnon e Gérard Genette), este trabalho busca a historicidade da
distopia – partindo da tríade clássica We, Admirável Mundo Novo e
1984 – para compreender as especificidades das distopias críticas
(conceito estudado por Lyman Tower Sargent e Vita Fortunati) e elege como
objeto de estudo a produção romanesca O conto da aia, de Margaret
Atwood, publicado em 1985. No romance de Atwood, em um tempo futuro, após embates
bélicos, a sociedade (Gilead) é dominada e governada por religiosos
fundamentalistas que subjugam as mulheres, abolindo seus direitos, obrigando-as
a exercer funções, sempre servindo aos homens: as “esposas” gerenciam a casa;
as “Marthas” são serventes; as “aias” engravidam. Tendo em vista a
infertilidade da humanidade (certamente o elemento catastrófico da narrativa),
as mulheres ainda férteis servem às castas superiores como meros corpos para
reprodução. Por meio deste estudo – intitulado “O feminino nas distopias
críticas: o poder e o controle do corpo” –, assinalarei, portanto, estas
especificidades da distopia clássica tematizadas no romance de Atwood: governo
totalitário (aliado à religião); cerceamento da liberdade e da individualidade;
signo do feminino (mulheres dominadas, subjugadas e escravizadas na sociedade
do futuro); e signo utópico. Além do suporte teórico acerca das distopias e
distopias críticas, serão essenciais as proposições de Michel Foucault acerca
da biopolítica, uma vez que, n’O conto da aia, as mulheres tornam-se
máquinas para reproduzir, controladas, subjugadas e massificadas; esse corpo
humano e feminino é controlado por uma soberania política totalitária que rege
a “mecânica do ser vivo” por meio de relações de poder.
V.
11 de outubro, das 11h30min às 13h — LOCAL: SALA 217
V.1 A
mulher e o pensamento do "humano": textualidades fora da lei
(17)
Rita Terezinha
Schmidt, ritaschmidt51@gmail.com
A partir da
afirmação de Judith Butler, em seu Undoing gender (2004), de que as
mulheres ainda não foram de todo incorporadas ao humano, pretendo traçar alguns
percursos do conceito de humano no contexto da filosofia antropocêntrica
e problematizar o referido conceito a partir do campo conceitual e
interdisciplinar definido como pós-humanismo. Em tempos de erosão de clássicas
oposições como natureza/cultura, bios/zoe, o desafio não é somente redefinir o
humano, mas considerar os deslocamentos operados a partir de sua
redefinição com relação ao corpo e à subjetividade feminina.
V.2 Corpos em
devir: o apagamento das fronteiras entre o animal e o humano nos contos de
Silvina Ocampo (18)
Rafael Eisinger
Guimarães, guimaraes@unisc.br
Irmã mais nova
da fundadora da revista Sur, Silvina Inocencia Ocampo Aguirre teve sua
imagem sempre intimamente relacionada a três das figuras tidas como as mais
importantes da cena literária argentina: seu esposo Adolfo Bioy Casares, seu
querido amigo Jorge Luis Borges, além de sua irmã mais velha, Victoria. Embora
tenha sido posta à sombra de tais figuras, Silvina desenvolveu, ao longo de
mais se 50 anos, um interessante e consistente trabalho como poeta e
ficcionista. Desta obra, adquirem especial relevância para nós os sete volumes
de contos da autora, nos quais as relações entre humanos e não-humanos são trazidas
à tona, por vezes atravessadas por elementos do fantástico, do onírico e do
duplo. Tendo em vista essas questões, pretende-se aqui verificar como a
narrativa de Ocampo problematiza e reconfigura os limites entre animais e
pessoas, em um movimento que, a nosso ver, instaura, já nos anos de 1930 e
1940, uma discussão do paradigma antropocêntrico. Para orientar o olhar crítico
proposto, lançaremos mão de algumas premissas fundamentais para os estudos
animais e os estudos da alteridade, tais como as reflexões de Jacques Derrida
desenvolvidas em seu O animal que logo sou (2002), o conceito de
devir-animal, elaborado por Gilles Deleuze e Félix Guattari no quarto volume de
seu Mil Platôs (1997), bem como as concepções de perspectivismo
ameríndio e multinaturalismo apresentadas por Eduardo Viveiros de Castro nos
ensaios de A inconstância da alma selvagem (2006).
V.3 O
processo de subjugação eurocêntrica dos sujeitos escravizados em A ilha sob
o mar, de Isabel Allende (19)
Laissy Taynã da
Silva Barbosa, yssial@hotmail.com
O poder foi
exercido pelos europeus colonizadores para subjugar o outro, os
diferentes, tais como índios, negros, mulheres de qualquer grupo social, entre
outras minorias. Tendo em vista esses processos historicamente violentos e
excludentes, este trabalho tem o objetivo de investigar o discurso sobre
questões étnico-raciais, em especial a partir das personagens femininas negras
(e descendentes), na narrativa A ilha sob o mar, de Isabel Allende
(2014). A obra se contextualiza em um período que levou milhares de sujeitos
escravizados da África para as plantações de cana-de-açúcar sob o discurso de
superioridade racial do ocidente. Allende põe em evidência o período de
escravidão na ilha de Saint-Domingue (atual Haiti) e a jornada dos personagens
até Luisiana, nos Estados Unidos da América. Desse modo, ao longo da narrativa,
a autora expõe demandas históricas, sociais e econômicas da ilha, assim como
relaciona tais elementos com a luta dos sujeitos para conseguir liberdade e a
vida das famílias de grand blancs que saíam da França para cultivar o
ouro refinado das Antilhas. A escolha do corpus se justifica pela obra
literária ser contemporânea, mas ambientadas na colonização do Haiti pelos
franceses e apresentar aspectos acerca do patriarcado, racismo e maternidade.
Para tanto, serão utilizadas as reflexões de Jacques Derrida, que problematiza
em seus trabalhos a questão do centro, logocentrismo e falocentrismo no
pensamento ocidental. A partir do pensamento desconstrucionista do filósofo
argelino, os teóricos pós-colonialistas começaram a pensar também sobre
alteridade, silenciamento, apagamento de vozes e processos de exclusão dos
sujeitos escravizados e marginalizados. Nesse sentido, partindo do interesse em
analisar o processo de construção identitária das personagens na narrativa,
proponho este trabalho tendo a crítica culturalista como suporte, a partir da
qual movimento as questões culturais a partir de Bhabha (2003), Hall (2005) e
Spivak (2010). Portanto, apesar da violência à qual os sujeitos escravizados da
ilha foram submetidos na narrativa, eles exercem práticas de resistência e
reafirmação identitária.
V.4 No
caminho entre a utopia e a distopia: um percurso para liberdade feminina
(20)
Elenara Walter
Quinhones, elenarawalter@gmail.com
No passado,
algumas mulheres construíram histórias utópicas, que serviam como instrumento
de crítica social, contrariando a lógica androcêntrica da sociedade em que
viviam. Esse é o caso do romance A Rainha do Ignoto: romance psicológico
(1899), de Emília Freitas, que é delineado sob a proposição de um mundo novo, a
Ilha do Nevoeiro, local onde as mulheres podem exercer diversas funções,
realizando-se profissional e socialmente, e alcançando a almejada liberdade.
Atualmente, os universos distópicos metaforizam valores culturais de uma
sociedade pós-moderna imersa em tecnologia e informação. Entretanto, as
reivindicações por situações equânimes e pela liberdade feminina, presentes na
sociedade idealizada por Freitas, no século XIX, ainda encontram-se válidas no
discurso literário contemporâneo. Nesse contexto que abrange o passado e o
presente, propomos uma discussão analítica entre o utópico romance de Freitas e
o conto distópico “Cidadela” (2013), de Lyra Libero, que trata da liberdade
feminina, e, principalmente, a liberdade da mulher em relação ao seu próprio
corpo. A forma com que Libero escolhe tematizar, ficcionalmente, essa liberdade
é colocando em discussão o aborto e o poder institucional sobre o corpo
feminino. Do ponto de vista teórico, essas narrativas permitem que estabeleçamos
eixos a partir dos postulados da crítica e teoria feminista no entrecruzamento
com questões de identidade, poder e gênero, a partir do paralelo natureza e
cultura. Embora, temporalmente, tão afastadas, as duas obras encontram
convergência quando rompem com os valores de subjugação patriarcal, que
estigmatizam a mulher como procriadora, vinculando-a, sempre, ao papel materno.
Elas opõem-se ao determinismo biológico e configuram-se como novas formas de
produção utópica e distópica.