Ilha 5 — Ilhas em Devir: o pós-humanismo e suas voltagens teórico-críticas

ILHA 5
ILHAS EM DEVIR:
O PÓS-HUMANISMO 
E SUAS VOLTAGENS 
TEÓRICO-CRÍTICAS 
Rita Schmidt 
e Rafael Guimarães 


A literatura comparada não só promoveu a ultrapassagem das fronteiras da literatura como se tornou, na última década, um campo fértil para discussões sobre desafios teóricos, críticos e éticos concernentes à produção de conhecimento sob as injunções do presente e da complexidade do mundo real. Hoje, coloca-se em questão o pensamento humanista como paradigma de conhecimento e valor calcado nas clássicas divisões entre o eu e o outro, a mente e o corpo, a sociedade e a natureza, o humano e o animal, o orgânico e o tecnológico. Assim, situar-se no horizonte do pensamento pós-humanista é explorar as condições de novas subjetividades e textualidades, com atenção às suas intensidades biológicas e tecnológicas, aos sistemas, redes e séries, às multiplicidades e rupturas, às superfícies virtuais e aos corpos reais que rasuram o que a tradição do pensamento ocidental convencionou definir como normativo, normal e natural. Ou seja, o pós-humanismo desestabiliza concepções antropocêntricas e desafia a concepção de humano/humanidade fundada, segundo Rosi Braidotti (2013), na suprema reivindicação de direito à ontologia. Como uma ferramenta conceitual, o pós-humanismo permite repensar o legado de referência para o humano em um tempo histórico de grandes avanços científicos, de experimentações e conquistas, mas também, de profundo ceticismo diante da racionalidade científica na qual a ciência e a técnica se colocam a serviço do capital, pelos vieses da chamada antropotécnica (mecanismos de produção do humano), e da biopolítica (modos de administração da vida). Nesse contexto, o pós-humanismo se configura como um campo de inovação nos discursos disciplinares ao abrir caminhos para articular o que não foi pensado, não foi dito, não foi teorizado, incluindo a própria obsolescência da categoria de sujeito, tal como formulado pela tradição ocidental. O simpósio é um convite para intervenções que contemplem, na literatura, nas artes e nas ciências humanas, reflexão e discussão a partir de: a dicotomia natureza x cultura e o continuum entre o dado e o construído; relações do humano, do des-humano e do pós-humano; zoe x bios: direitos humanos/direitos dos animais; manifestações do abjeto, do monstruoso e do cyborg; sistemas sociais, hibridização e contaminação; subjetividades nômades e performatividades pós-humanistas; categorias identitárias e hierarquias de normalização, tais como gênero, sexualidade, classe, raça, etnia, e nacionalidade; novas sociabilidades e novas materialidades; interseccionalidades entre o corpo humano e a máquina à luz da ciência cognitiva e da neurobiologia; estudos de animal (animal studies) e suas contribuições no campo da teoria e crítica literária; linguagem e comunicação trans-espécie; o fantasma da crise ecológica; o humano e o animal na perspectiva da bioética; a literatura e a ecologia cultural; visões distópicas e pós-utópicas; questões filosóficas em torno de valores, ética, violência, lei e justiça.


HORÁRIOS E LOCAIS DAS COMUNICAÇÕES

I. 9 de outubro, das 11h30min às 13h — LOCAL: SALA 208

I.1 A criação de um corpo que falta, Camila Alexandrini
I.2 Mínimo bestiário adorniano: o Peixe n’água, Alexandre Costi Pandolfo
I.3 Googlear para representar: o eu-lírico-ciborgue de Angélica Freitas, Luciéle Bernardi de Souza
I.4 “Ela é amapô de carne, osso e silicone industrial”: o gênero enquanto prótese no contexto do pós-humanismo, Virgínea Novack Santos da Rocha

II. 9 de outubro, das 16h às 17h30min — LOCAL: SALA 217

II.1 Devires rizomáticos nas coexistências pós-humanas em Agda, de Hilda Hilst, Jorge Alves Santana
II.2 Notas sobre uma estranha contiguidade: animalidades na literatura mexicana contemporânea, Renata Farias de Felippe
II.3 Sexualidade e corpo feminino na literatura portuguesa contemporânea, Paula Renata Lucas Collares Ramis
II.4 Los Topos e a reivindicação por lutos possíveis: corpo, espectro, pós-memória e política na ficção pós-ditatorial argentina de segunda geração, Izabel Fontes

III. 10 de outubro, das 10h às 11h30min — LOCAL: SALA 208

III.1 O (não)humano em Frankenstein, de Mary Shelley, Thiago Leonello Andreuzzi
III.2 A binarização frente a seres pós-humanos não genderizados: uma análise sobre o utopismo em A mão esquerda da escuridão, Ânderson Martins Pereira e Ariane Avila Netto
III.3 A consciência pós-humana marcada pelas delimitações contemporâneas: uma análise sobre o ser ginóide em Os deuses de Pedra, de Jeanette Winterson, Ariane Avila Neto de Farias e Ânderson Martins Pereira
III.4 Máquinas de fazer mundo(s): ficção científica e fabulação maquínica, André Corrêa da Silva de Araujo e Fernando Silva e Silva

IV. 10 de outubro, das 16h às 17h30min — LOCAL: SALA 217

IV.1 Afinal, o que é o humano? — Neo-transumanismo e o debate do pós-antropoceno na trilogia Madd Addam, de Margaret Atwood, Eduardo Marks de Marques
IV.2 O corpo-objeto em O conto da aia — a desperformatização do corpo da mulher no universo distópico do romance, Luana de Carvalho Krüger
IV.3 O conto da aia: estado de exceção e controle dos corpos em Margaret Atwood, Mariane Pereira Rocha
IV.4 O feminino nas distopias críticas: o poder e o controle do corpo, Caroline Valada Becker

V. 11 de outubro, das 11h30min às 13h — LOCAL: SALA 217

V.1 A mulher e o pensamento do "humano": textualidades fora da lei, Rita Terezinha Schmidt
V.2 Corpos em devir: o apagamento das fronteiras entre o animal e o humano nos contos de Silvina Ocampo, Rafael Eisinger Guimarães
V.3 O processo de subjugação eurocêntrica dos sujeitos escravizados em A ilha sob o mar, de Isabel Allende, Laissy Taynã da Silva Barbosa
V.4 No caminho entre a utopia e a distopia: um percurso para liberdade feminina, Elenara Walter Quinhones

RESUMOS DAS COMUNICAÇÕES

I. 9 de outubro, das 11h30min às 13h — LOCAL: SALA 208

I.1 A criação de um corpo que falta (1)
Camila Alexandrini, camilalexandrini@msn.com

Partindo das diversas ilhas de contribuições teóricas, filosóficas e metodológicas que se arquipelagam diante de mim, os desdobramentos da tese “Palavra-Performance” (2017) buscam, nesse momento, criar um corpo que falta. “Temos nós o nosso corpo? [...] O corpo é a única coisa que temos (somos?) e, no entanto, não temos o corpo” (BARRENTO, 2015, p.13). Ao corpo da medicina, ao corpo-organismo, a palavra-performance age propondo outras reconfigurações, evidenciando a existência de corpos diversos, arranjados de maneiras não representadas pela biopolítica do Estado, apartadas das tecnologias que formam um corpo em constante contradição. A palavra-performance almeja tirá-los do anonimato, das regras que os conduzem à disciplina diária do supostamente sadio ou saudável. Fora isso, na evidência dessas formas corporais que se olham no espelho e não se veem, alça a beleza que há em cada um, faz respirar o pulmão que há dentro delas. A palavra-performance, essa ação imponderável, cujo ponto de partida e chegada é a própria consciência desse devir-corpo, estimula que todos sejam protagonistas do corpo que ainda não têm. A(s) máquina(s) do corpo, sua máquina de guerra, penetra(m) os espaços públicos e privados para desnaturalizar a virtude banal de apenas ter um corpo, considerando que todos são iguais e igualmente entendidos. Essa virtude banal nos coloca sempre às margens do corpo que (não) temos. Carregamos a prótese de nós mesmos e, cansados ao fim do dia, deixamos, mais uma vez, de perceber as ações que nosso corpo (material, social, mental e libidinal) desempenhou e, portanto, nem nos colocamos atentos, muitas vezes, às transformações que nele se dão – a não ser quando fragilizados, doentes ou em estado febril. A pulsão do corpo na palavra-performance salta do que se diz sobre ele para o que se faz com e por meio dele. E no dizer não reside apenas a palavra, assim como ação não consiste apenas em performance. O movimento é um ritornelo: ora parte da palavra para se (des)territorializar em outros espaços, em outras formas, ora é tido como ação para se deslocar e, quem sabe, ser palavra (e não voltar a ser porque não se pretende o retorno originário). E é, nesse movimento, o qual propõe indecidibilidade e suplementaridade entre o que se diz sobre o corpo e a sua criação, que esta proposta teórico-poética se dispõe.

I.2 Mínimo bestiário adorniano: o Peixe n’água (2)
Alexandre Costi Pandolfo, alexandrecostipandolfo@gmail.com

O trabalho procura expor algumas questões a respeito da “animalidade” e da biopolítica provocadas por determinadas imagens indeterminadas do livro Minima moralia, de Theodor Adorno. Não se trata de trabalhar um conceito meramente disponível na filosofia de Adorno. A sua aparência aqui está intrincada às ambiguidades criativas de alguns outros dos mais importantes conceitos que se movimentam de forma constelacional nos escritos do pensador frankfurtiano: sofrimento, dominação e não-identidade, dentre outros. Mas o empenho em aponta-lo neste trabalho imiscui-se ao empenho de montar o que já é ruína a partir de algumas das imagens dialéticas que estão disponíveis em especial nesse livro, um livro de fragmentos, um livro fragmentado sobre os fragmentos da vida danificada (aus dem beschädigten Leben). Isso se apresenta, portanto, como um corte, cujas bordas, margens ou sombras, sobras ou assombros hoje, na sociedade bioadministrada que é a nossa, não devem ser entendidos literalmente, mas fantasticamente. Este trabalho aponta para três bestas encontradas dentre esses fragmentos, descritas em determinados momentos da coleção de fragmentos danificados, mas escolhe uma para apresentar; com isso, procura deixar aparecer alguns motes e algumas modulações do conteúdo biopolítico da linguagem adorniana. As bestas são o Peixe n’água, o Gato por lebre e o Mamute. A presente proposta de comunicação foca no Peixe n’água. Em questão estão as relações humanas-desumanas-pós-humanas, a linguagem identificada à comunicação e da mesma forma o jogo com o abjeto. O mínimo bestiário adorniano aqui trazido à tona demonstra, nos desdobramentos mais recentes das suas figuras, coincidir com os cacos do capitalismo tardio, historicamente assentado à maníaca visão do ser-aí em seu empreendimento sobre o outro, contra o outro material, hoje tecnicamente planejado e executável. A racionalidade instrumental, o positivismo lógico, o idealismo e o humanismo em todas as suas variantes edificaram a fatalidade artificial na qual há séculos vem sendo fabricado não apenas “o homem” sujeito-objeto corpo-entregue numa existência incomensuravelmente aterrorizante, mas, principalmente, o estado e a sociedade e o “natural” sendo historicamente fabricados através da expansão de uma linguagem, micro e macrológica, que socialmente responde pelo nome de segunda natureza – que está para muito além da natureza perdida. Este trabalho trata sobre isso. Uma tentativa de leitura bestial em torno à crítica da ontologia fundamental sem resolver ou desfazer os nós persistentes à ambiguidade das imagens evocadas desde o âmago da linguagem adorniana.

I.3 Googlear para representar: o eu-lírico-ciborgue de Angélica Freitas (3)
Luciéle Bernardi de Souza, lucielebernardi@gmail.com

Este escrito é uma reflexão sobre a relação estabelecida entre o homem e a máquina (ou homem-máquina) na constituição do fazer literário. Para isso, parto da seguinte pergunta: Poderia a máquina ser um elemento propulsor, participativo e efetivo na conformação da obra de arte? O poema Três poemas com auxílio do Google, da poeta Angélica Freitas, foi que suscitou tal pergunta e posterior reflexão, pois a autora valeu-se do “oráculo do século XXI” para não suscitar dúvidas quanto à capacidade de criação e de representação que pode advir de um eu-lírico-ciborgue. Minha reflexão também buscou compreender o fluxo entre duas entidades, conformador deste eu-lírico híbrido, importante na medida em que leva-nos a pensar sobre uma característica essencialmente humana: a sensibilidade e a capacidade de se criar representações, de expressar o mundo e plasmar o momento histórico-social e tecnológico no qual estamos inseridos. Pensei o fazer literário enquanto uma representação que problematiza a identidade, a sensibilidade e a representação do humano através deste singular processo de criação literária, fruto de uma sensibilidade que permeia o mundo contemporâneo. Angélica Freitas elabora, portanto, de maneira interessante e muito atual, uma arte politizada e subjetiva, resultado da expressão de uma nova ordem sensível que, todavia, ainda estamos em processo de compreensão.

I.4 “Ela é amapô de carne, osso e silicone industrial”: o gênero enquanto prótese no contexto do pós-humanismo (4)
Virgínea Novack Santos da Rocha, novack.virginea@gmail.com

A literatura nunca aconteceu isolada do mundo, mas nas últimas décadas parece cada vez mais carregada de subjetividades. No entanto, diferentemente do que se estava acostumado até então, as subjetividades que emergem são as mais variadas: autoria, narração e personagens plurais. Nesse sentido, pode-se afirmar que o humanismo de certa forma não dá mais conta de pensar o sujeito a partir de uma ontologia única e singular, o que gera uma problemática conceitual e nos leva ao pós-humanismo. Dessa forma, a partir desse novo paradigma que se instaura, os clássicos e mais rígidos limiares entre o eu e o Outro; natureza e cultura; orgânico e inorgânico ou tecnológico flexibilizam-se, sendo, portanto, nesse sentido que as Teorias Feministas interseccionam-se com essas novas concepções de sujeito, ressituando o debate sobre as mulheres na questão do corpo, isto é, no corpo da mulher. Assim, o corpo da mulher, silenciado e violentado, historicamente marcado como Outro do homem, dentro de uma estrutura falocêntrica em que o falo se contrapõe a ausência do falo, representado materialmente pelo pênis, carece de reflexão quando o corpo da mulher é aquele que possui o falo-pênis-pau, como canta Linn da Quebrada “Ela tem cara de mulher/ Ela tem corpo de mulher/ Ela tem jeito/ Tem bunda/ Tem peito/ E o pau de mulher!”. A genitália (pênis/vagina) em nossa cultura, como se sabe, é o grande marcador do gênero, embora algumas outras partes do corpo (materiais ou virtuais) possam significar o gênero também. Nesse sentido, Paul B. Preciado, a partir de reflexões prévias de Teresa de Lauretis e Donna Haraway, é precisa/o ao eleger o dildo como ocupante de “um lugar estratégico entre o falo e o pênis. Ele atua como um filtro e denuncia a pretensão do pênis de se fazer passar pelo falo.” (p.75), situando toda a questão das discussões de gênero não entre a organicidade e a plasticidade (o gênero orgânico ou o gênero plástico/artificial/falso), mas em algum ponto entre esses dois aspectos, que nos leva a compreender todos os corpos como corpos pré-op, implodindo, assim, o gênero enquanto uma tecnologia binária de poder.

II. 9 de outubro, das 16h às 17h30min — LOCAL: SALA 217

II.1 Devires rizomáticos nas coexistências pós-humanas em Agda, de Hilda Hilst (5)
Jorge Alves Santana, jorgeufg@bol.com.br

“Alguém lhe toca, minha senhora? Mil perdões, senhora, não quis dizer, luvas quem sabe, ajudariam? Mil perdões, senhora, não quis dizer, enfim quero dizer que para revitalizar essa espécie de flacidez, assim na sua idade, cincoenta? Cincoenta e cinco?” (Agda. Hilda HILST, 2002.) Dessa forma se inicia o conto Agda da narrativa homônima que abre a coletânea Kadosh (2002), de Hilda Hilst. Um médico perfaz certa anamnese sobre o estado corporal de uma mulher que beira à velhice. Pretendemos analisar tal narrativa na perspectiva de compreender mais essa mulher ficcionalizada/experenciada por Hilst, que vivencia o processo de envelhecimento, a instalação precoce da velhice e o corolário psicossocial que disso surge. Ela nos é apresentada por/em uma discursividade rizomática entre/com prosa e poesia disposta em fluxos que tentam apreender e minimizar a ação de seu socius normalizador, carregado de dispositivos repressores e conformadores de identidades fixas. Nas sensações, instintos, relações coexistenciais e experimentações do corpo feminino vigiado, normatizado e bloqueado, Agda imerge nas potencialidades deslocadoras do reino animal, do vegetal e do mineral que passam a ser sentidos como fontes energéticas capazes de recriarem novos universos existenciais que possam ir ao encontro de sua condição intrinsecamente heterogênea, múltipla e conectada. Essa personagem, das mais instigantes compostas por Hilst, apresenta-se no campo biografemático (a personagem denota poeticamente várias características psicossociais empíricas e imaginárias da autora), no qual podemos acompanhar os devires intensos (DELEUZE; GUATTARI: 1997) presentes nos desdobramentos diegéticos, bem como a concretização de um paradigma estético apoiado nas três ecologias: a ambiental, a social e a mental (GUATTARI: 1992; 1990). Assim, tentaremos acompanhar as posições provisórias de Agda nos seus movimentos subjetivos que são diversos e nômades (BRAIDOTTI, 2002). Construção de personagem essa que nos aponta as hibridizações entre corpos humanos e corporidades já pós-humanas nos contextos de lugares psicossociais nos quais as fronteiras identitárias, femininas e/ou de gêneros historicizados e, portanto, culturalizados, já não são experimentadas de modo essencialmente estanques (BUTLER, 2002; IRIGARAY, 2002). Dessa forma, pretendemos compreender como estratégias literárias de nossa contemporaneidade esforçam-se por representar/expressar existencialidades no campo do pós-humano, bem como a relevância de tais dispositivos estéticos para nossas realidades pragmáticas.

II.2 Notas sobre uma estranha contiguidade: animalidades na literatura mexicana contemporânea (6)
Renata Farias de Felippe, renafelippe@yahoo.com.br

A denominada “virada animal” incidente sobre as práticas estéticas recentes, espécie de resposta aos “fluxos desumanizantes do neoliberalismo contemporâneo” (GARRAMUÑO, 2011, p. 114), chama a atenção não só para os modos de responsabilidade humana em relação às demais espécies viventes, como colabora para a formulação de “novas virtualidades do inumano e de suas comunidades possíveis” (ibidem). Atentas a tais potencialidades, vozes da literatura atual – sejam elas consagradas, como as de J.M. Coetzee e de Mario Bellatin, sejam ficções em crescente visibilidade, como as produções de Guadalupe Nettel e de Joca Reiners Terron -, têm chamado a atenção para a “estranha familiaridade” entre animais humanos e não-humanos, estreitamento que abala preceitos humanistas e que oferece uma perspectiva relevante para a discussão das alteridades. Os questionamentos decorrentes dessa contiguidade oferecem perspectivas estratégicas para se (re)pensar as produções literárias de países que lidam, simultaneamente, com as marcas do passado colonial e com os efeitos do atual neoliberalismo. Considerados esses elementos, o objetivo desse trabalho é o de discutir a questão da animalidade como uma espécie de chave de leitura capaz de oferecer novos ângulos analíticos voltados para problemáticas reincidentes na literatura hispano-americana atual, mais especificamente, na literatura mexicana contemporânea. O desenvolvimento dessa análise terá a novela Salón de belleza (1994), de Mario Bellatin, e o conto “Guerra en los basureros” (2013), de Guadalupe Nettel, como referências ficcionais, narrativas que redimensionam a problemática das tensões sociais e de gênero ao atentarem para as questões da outridade animal e do abjeto. Nas narrativas em questão, animais humanos e não-humanos partilham vulnerabilidades, mas também uma “energia bruta, irracional e despojada de toda a ilusão redentora” (ibidem, p. 107), proximidades que ressignificam as noções de empatia e que estreitam alteridades.

II.3 Sexualidade e corpo feminino na literatura portuguesa contemporânea (7)
Paula Renata Lucas Collares Ramis, paulacollares123@hotmail.com

Pierre Bourdieu, em A dominação masculina, analisa os pressupostos de nossa sociedade androcêntrica que legitima a dominação masculina e observa a mulher como objeto simbólico. A relação sexual entre homens e mulheres mostra muito bem determinada organização social: “Se a relação sexual se mostra como uma relação social de dominação, é porque ela está construída através do princípio de divisão fundamental entre o masculino, ativo, e o feminino, passivo, e porque este princípio cria, organiza, expressa e dirige o desejo — o desejo masculino como desejo de posse, como dominação erotizada, e o desejo feminino como desejo da dominação masculina, como subordinação erotizada, ou mesmo, em última instância, como reconhecimento erotizado da dominação” (BORDIEU, 2005, p.31). Por muito tempo, a mulher na literatura foi representada como uma projeção dos desejos masculinos, sendo o desejo feminino visto como tabu. Na literatura contemporânea portuguesa de autoria feminina percebe-se que muitas vezes as questões referentes ao corpo (e suas representações) são utilizadas para discutir todo um arcabouço cultural, político e social. Em vários momentos, as mulheres retratadas nas obras problematizam, por um lado, os valores de uma sociedade patriarcal, contudo também percebe-se que seus comportamentos reproduzem certos valores dessa ideologia. Esse trabalho pretende analisar a representação do corpo feminino e da sexualidade em três autoras de literatura portuguesa contemporânea. A partir dos romances Ema (1984), Os Meus Sentimentos (2005) e O Meu Amante de Domingo (2014), de Maria Teresa Horta, Dulce Maria Cardoso e Alexandra Lucas Coelho, respectivamente, deseja-se analisar o corpo e a sexualidade feminina como lugar de poder e de opressão. Ema, enclausurada e silenciada, tem seus pequenos momentos de libertação quando, após ser violada pelo marido, tranca-se no banheiro e vai em busca do seu próprio prazer. Violeta, personagem de Cardoso, quer sentir o amor e por isso tornou-se uma mulher ávida por qualquer migalha, sendo capaz de ter relações sexuais com desconhecidos em banheiros de beira de estrada. Já a personagem de Alexandra Coelho é uma mulher que compra preservativos e muitas vezes mostra que quer apenas satisfazer os seus desejos sexuais.

II.4 Los Topos e a reivindicação por lutos possíveis: corpo, espectro, pós-memória e política na ficção pós-ditatorial argentina de segunda geração (8)
Izabel Fontes, fontesizabel@gmail.com

Nesta apresentação, buscarei uma aproximação a Los Topos (2008), romance de estreia do escritor argentino Félix Bruzzone. Filho de desaparecidos políticos da última ditadura militar no país, Bruzzone revisita os anos de violência e a sua história familiar através da mistura de uma narrativa autobiográfica com elementos ficcionais. No entanto, o texto de Bruzzone pode ser visto como um ponto de fuga dentro do fenômeno surgido nos anos 2000 e que se convencionou chamar de literatura autoficcional de segunda geração, afastando-se da busca identitária e da gravidade memorialística que caracterizam autores como Laura Alcoba, Martín Kohan, Samantha Schwebelin ou Andrés Neuman. Fazendo uso do humor, do absurdo e da paródia, o autor opera um desmonte da própria identidade e dos processos políticos de memória, questionando não somente seu papel social como órfão da ditadura, mas também o trabalho de luto e o dever de rememoração que marcam a sociedade argentina, ressaltando que ambos são processos políticos excludentes e normativos. Esse questionamento aparece no texto através do desmonte do próprio narrador, que, ao iniciar uma investigação há muito evitada acerca da história do seus pais, começa a afastar-se de seus lugares de identidade: casa, cidade, círculo social, razão, gênero e, por fim, de seu próprio corpo, reivindicando novos lugares de luto e apontando que dentro dos lugares oficiais da memória não existe lugar para vidas dissidentes e existências que fogem do padrão. Essa falta de lugar está materializada no texto de Bruzzone dentro da emblemática figura do desaparecido político e das movimentações sociais que giram ao seu redor. Visto como o maior dos símbolos da violência estatal da ditadura argentina, o desaparecido pode ser encarado como uma espécie de espectro que nunca pode abandonar a terra, já que é um fantasma sem corpo, produto de uma morte apenas ficcional que condena aqueles que ficaram a um luto impossível e irrealizável. Acima de tudo, o desaparecido apaga as fronteiras entre o mundo dos vivos e dos mortos, entre o humano e o não-humano, desestabilizando as políticas da vida que regem estas esferas. Em Los Topos, a temática do desaparecido político é vista como metáfora, sendo reatualizada para os anos 2000 através da exposição de outras formas de desaparecimento menos célebres – mais especificamente, o desaparecimento resultante não da perseguição política, mas da invisibilidade da exclusão social (seja ela econômica, política ou cultural). Para realizar uma aproximação às atualizações do lugar do desaparecimento nos discursos de memória da sociedade argentina pós-ditatorial em contraponto à obra de Bruzzone, resgatarei alguns conceitos da biopolítica do luto como proposto por Judith Butler em Frames of war (2009) e algumas inquietações lançadas por Fabián Ludueña Romandini sobre o lugar do espectro na sociedade moderna em seu A comunidade dos espectros (2012).

III. 10 de outubro, das 10h às 11h30min — LOCAL: SALA 208

III.1 O (não)humano em Frankenstein, de Mary Shelley (9)
Thiago Leonello Andreuzzi, thiago.literato@gmail.com

Analisando a obra Frankenstein, de Mary Shelley, busca-se compreender a crítica de um padrão racionalista e eurocêntrico de interpretação do mundo, em auge no século XIX, bem como sua relação com o contexto sócio-cultural pós revoluções francesa e industrial. Para tanto, será levado em consideração os critérios de construção do(s) monstro(s) formulado pela literatura gótica em língua inglesa, tais quais os critérios étnicos, físicos e estéticos de grupos não-estabelecidos – sobretudo na capital do Império Britânico, no século XIX – em que o confronto étnico-social é agravado e vem à tona através do progresso e discurso científicos. Através da figura do monstro, busca-se compreender as discussões entre natureza, artificial e sobrenatural, discurso político e literatura, discurso científico e normatização de preconceitos, na formação e/ou apropriação do monstro, visto como um counterfeit (significado próximo ao de cópia-falsa) de um humano. Sendo assim, será explorado como a figura do monstro e seu antagonista e criador servem para levantar a discussão acerca do que pode ser considerado humano (e o porquê disto), bem como um aviso ao avanço científico desprovido da ponderação sobre suas consequências – problemas esses que foram apropriados pelo discurso dominante, sobretudo no que se refere às ideias políticas. Por fim, vê-se como o monstro, negado pela sociedade, ainda é possuidor de uma natureza, mesmo que tenha uma origem artificial: seu desenvolvimento se dá nos termos dos postulados de Locke, através da teoria da “tábula rasa”, em que o indivíduo só se desenvolve através das experiências vividas (das quais as sensoriais são as primeiras), e de Rousseau, no que se refere à teoria do “bom selvagem”, constantemente invocada pelo monstro para defender sua inocência antes do contato com a sociedade humana – e esse conflito se reflete na história que narra e a imersão na vida social, posta na busca de uma companheira e um local para viver entre os da sua espécie.

III.2 A binarização frente a seres pós-humanos não genderizados: uma análise sobre o utopismo em A mão esquerda da escuridão (10)
Ânderson Martins Pereira e Ariane Avila Netto, andersonmartinsp@gmail.com; arianeaneto@hotmail.com

Nas utopias, o social é problematizado a partir de um ideal de sociedade. Neste viés, a obra de ficção cientifica A mão esquerda da escuridão, escrita por Ursula le Guin, não retrata exatamente um ideal social, mas, através da criação de um mundo no qual convenções binárias de gênero não existem, insere a si um subtexto utópico. A partir da definição de utopismo de Lymar – a qual abrange posicionamentos idealistas, sejam eles relacionados ao sonho ou ao pesadelo – pode-se observar que a obra traz um grande ideal acerca da temática do gênero utopia e escolhe explorá-la pela diferença, pois a narrativa é perpassada por seres que apresentam simultaneamente características biológicas e identitárias masculinas e femininas. A obra, publicada originalmente em 1969, traz discussões ainda vigentes sobre o ser genderizado e sua sexualidade. Desta forma, objetiva-se com esta pesquisa discutir a relação entre os gêneros na obra e refletir em que medida esta representa um ideal utópico. Além disso, pretende-se traçar paralelos entre estes seres pós-humanos e o viajante, o qual se relaciona e problematiza as questões do estrangeiro humano, masculino e negro que começa a viver no planeta inverno. O foco neste personagem justifica-se na medida em que ele, ao mesmo tempo em que estabelece com o leitor uma conexão com o desconhecido, discute o fluído de uma forma mais familiar a nossa sociedade e não pouco preconceituosa. A problemática do social se dá no entendimento, não só do personagem terráqueo, mas também a partir de seres pós-humanos que já superaram as desigualdades de gênero. Contudo, estes seres, ainda que de certa forma mais evoluídos, são idealizados a partir de problemáticas vigentes. Tal pensamento se ancora no texto introdutório à obra feito pela própria autora que pontua: “A ficção cientifica não prevê; descreve” (LE GUIN, 2014, p.8). Assim, a obra é, também, uma grande metáfora para as relações de gênero e é a partir desta premissa que se pretende discutir o ideal utopista das relações no texto.

III.3 A consciência pós-humana marcada pelas delimitações contemporâneas: uma análise sobre o ser ginóide em Os deuses de Pedra, de Jeanette Winterson (11)
Ariane Avila Neto de Farias e Ânderson Martins Pereira, arianeaneto@hotmail.com; andersonmartinsp@gmail.com

Correntes filosóficas que desafiam a relação do humano com o seu corpo emergem na contemporaneidade, dentre elas pode-se citar o transumanismo e o pós-humanismo, falando respectivamente sobre a evolução da espécie ou disseminação da consciência e razão como algo que transcende o humano. Sobre este viés, a literatura, em especial a ficção cientifica, tem contribuído para a idealização de sociedades futurísticas, nas quais estes seres já existem. Contudo, esses personagens, ainda que desafiem a fronteira proposta pelo humanismo, são idealizados à maneira contemporânea e possuem traços deste tempo. Dentre estas características, cabe salientar as questões de gênero que perpassam tais seres, relacionando-os, na aparência e nos papéis sociais que ocupam, aos gêneros e papéis binários experienciados ainda na atualidade. Sob este viés, este trabalho busca analisar a representação da ginóide Spike na obra Deuses de Pedra (2012), de Jeanette Winterson. Buscar-se-á refletir sobre como a apresentação física e morfológica do feminino se dá na personagem e como essas características a obrigam a ocupar determinados espaços dentro da sociedade. Nesse sentido, a orientação sexual da robô também será destacada, visto que esta é obrigada a uma vivência heterossexual, mesmo que mantenha também relações lésbicas com consentimento próprio. Desta forma, planeja-se refletir sobre a forma que a sociedade atual prevê as relações interespécies e as possíveis repetições de cerceamentos e delimitações genderizados presentes na sociedade atual. Para tal discussão, partir-se-á dos aportes de Francis Fukuyama (2002) no livro Our Posthuman Future: Consequences of the Biotechnology Revolution, para questionar o quão o futuro está atrelado as delimitações feitas pelo presente. Além disso, para se pensar nas questões de gênero levantadas pela personagem, pretende-se utilizar as contribuições de Teresa de Lauretis em seu texto, Tecnologia de Gênero (1994). As reflexões da autora são importantes para o entendimento de que os gêneros são entendidos como produzidos por uma tecnologia formadora de discursos que se apoiam em instituições como a família e a escola, aí sendo criadas as categorias homem e mulher para todas as pessoas.

III.4 Máquinas de fazer mundo(s): ficção científica e fabulação maquínica (12)
André Corrêa da Silva de Araujo e Fernando Silva e Silva, andrecsaraujo@gmail.com; fernandosesilva@gmail.com

Ao abordar a obra de Kafka, Deleuze e Guattari propõem que seus textos sejam compreendidos como ‘máquinas de escrita’. De acordo com eles, um romance, para além de seu caráter interpretativo ou simbólico, tem a capacidade de agir diretamente na formação maquínica da realidade. Um texto literário não existe meramente como representação, em uma esfera ontologicamente separada de outras entidades como árvores, partidos políticos ou furacões. É uma máquina entre outras máquinas, cujo funcionamento diz respeito à distribuição, organização, acoplamento e desacoplamento maquínicos. Como afirmam os filósofos, escrever tem uma dupla função: a de traduzir tudo em agenciamentos e desfazê-los. E ambos os gestos são o mesmo. A partir dessa provocação, o presente trabalho questiona-se sobre o caráter maquínico da literatura de ficção-científica produzida contemporaneamente, que parece estar engajada em fazer e desfazer certos tipos de territórios existenciais. Um tipo de literatura aberta a experimentar especulativamente quais os possíveis arranjos que podem emergir a partir da dissolução e reorganização de antigas fronteiras, entre humano e não-humano, vida e não-vida, indivíduo e sociedade, ciência e outras produções de verdade, natureza e cultura. Devido a sua tradição de experimentação com categorias subjetivas, espaciais e temporais, a ficção científica é historicamente um espaço fértil para esse tipo de fabulação. Nas últimas décadas, auto-conscientes do poder do texto literário em afetar as formas coletivas de organização, diversos autores, como Jeff VanderMeer, Octavia Butler e Ursula Le Guin, têm produzido obras em confronto explícito com o estado das coisas, sem, no entanto, recorrer a um denuncismo do tipo realista. Levando em conta os pontos acima, neste trabalho, primeiramente, apresentamos a concepção maquínica do texto literário. Em seguida, apontamos o caráter peculiar de certa ficção-científica contemporânea e seu papel em fazer-nos vislumbrar outros modos de existência. Finalmente, nos focamos na produção literária de alguns autores estadunidenses, em sua maioria ainda vivos, e analisamos suas contribuições para, a partir de sua escrita, refazer aquilo que tomamos como dado.

IV. 10 de outubro, das 16h às 17h30min — LOCAL: SALA 217

IV.1 Afinal, o que é o humano? – Neo-transumanismo e o debate do pós-antropoceno na trilogia Madd Addam, de Margaret Atwood (13)
Eduardo Marks de Marques, eduardo.marks@mandic.com.br

Geralmente lida como um exemplo de ficção (especulativa) distópica contemporânea, a trilogia MaddAddam (Oryx & Crake, O Ano do Dilúvio e MaddAddam, este último ainda sem tradução para o português), da escritora canadense Margaret Atwood, é também um bom exemplo dos debates complexos envolvendo as tensões das filosofias pós-humana e transumana (definidas a partir de pensadores como Cary Wolfe, Max More e Natasha Vita-More) e daquelas acerca da noção contemporânea de antropoceno (conforme discutidas por Francesca Ferando e Gilsi Palsson et al). O universo criado nos romances, uma resposta ao ritmo desenfreado do capitalismo tecnológico tardio e da relação do humano com o ambiente, com a tecnologia e consigo mesmo, pode ser visto superficialmente como pós-apocalíptico. No entanto, uma leitura mais cuidadosa nos permite verificar que o debate é ainda mais profundo do que aquele acerca das definições basilares dos preceitos críticos expostos anteriormente. A presente comunicação almeja discutir como os romances pós-apocalípticos de Atwood podem, na verdade, ser entendidos como uma tentativa de minar – e, também, de problematizar – o que pretendem os projetos pós-humanos do capitalismo tecnológico e como pode ser possível (se é que pode) desenvolver um entendimento de um Antropoceno pós-humano através da criação dos Crakers, hominídeos geneticamente desenvolvidos para repovoar o planeta após a pandemia denominada Dilúvio Seco.

IV.2 O corpo-objeto em O conto da aia – a desperformatização do corpo da mulher no universo distópico do romance (14)
Luana de Carvalho Krüger, luana-kruger@hotmail.com

O conto da aia (1985), de Margaret Atwood, é um romance distópico que apresenta uma teocracia totalitária que assume o poder nos Estados Unidos em um período em que a fertilidade humana está comprometida. Nesse cenário, as mulheres são divididas em diferentes castas, tendo seus direitos e deveres delimitados aos seus papéis sociais. Uma dessas castas são as aias, mulheres que supostamente são férteis e que são designadas a diferentes casas de homens ligados ao governo para, uma vez ao mês, manterem relações sexuais com ele na tentativa de gerar um filho para aquela família. No romance, as aias são cuidadas e mantidas sob observação em um ambiente onde o cuidado com o corpo torna-se fundamental, no entanto, não há o reconhecimento desse corpo como sujeito, ou seja, as aias são um corpo-objeto que deve ser conservado, mas, quando atingido o objetivo, pode ser descartado. De acordo com Marisa Mello de Lima (2013), os estudos acerca do corpo na contemporaneidade observam-no como vetor das manifestações performáticas do sujeito. O corpo ganha espaço para além de sua funcionalidade, de modo que as influências de imagem, escolhas e construção social colocam o corpo no foco de uma performatividade que está diretamente ligada à posição do sujeito na sociedade. Nessa perspectiva, observa-se que em O conto da aia, embora haja uma valorização do corpo, o sujeito-mulher é anulado na casca das aias, colocando-as como objetos reprodutivos e descartáveis em circunstâncias adversas ao esperado socialmente. Logo, a performance de sujeito-mulher e mulher-mãe é anulada, enfatizando a manutenção dos corpos a partir da desperformatização do sujeito, ou seja, anulação do corpo como espaço performático dos sujeitos, para o desempenho de uma ‘performance-objeto’. Nesse trabalho, pretendemos discutir a importância do corpo nas discussões de performance e reconhecimento de sujeito a partir da ausência imposta pelas aias e subversão de algumas personagens do romance.

IV.3 O conto da aia: estado de exceção e controle dos corpos em Margaret Atwood (15)
Mariane Pereira Rocha, marianep.rocha@gmail.com

Em O conto da aia, escrito por Margaret Atwood e publicado em 1985, encontramos uma nova realidade, na qual as mulheres não têm mais direitos: suas contas bancárias foram congeladas e relegadas aos familiares homens mais próximos, elas não podem mais trabalhar e foram divididas em castas, sendo que as “aias” cumprem a função reprodutora de dar filhos aos comandantes mais poderosos e ricos de Gilead, uma vez que a taxa de natalidade do país caiu drasticamente em função da degradação do meio ambiente. Entendendo que nessa sociedade distópica um estado de exceção foi instaurado, visto que a nova organização feita pelos soberanos foi implementada dentro das leis do país, será analisada neste trabalho de que forma as mulheres se tornam o que Agamben (2010) definiu como Homo sacer, vidas que são insacrificáveis mas, ao mesmo tempo, matáveis, tendo sua vida política (bios) reduzida à animalização e objetificação (zoe), já que são designadas, nas palavras de Offred, protagonista e narradora desse romance, como “pertences da casa”, a elas não sendo permitido nenhuma atuação política na sociedade. Aliado a isso, discute-se em quais condições a organização do poder sobre a vida baseada no controle dos corpos (Foucault, 1988) se apresenta nesta narrativa, para entender de que forma as personagens mulheres são controladas pelo Estado e até que ponto elas conseguem contornar esse controle, entendendo aqui questões como o suicídio e o aborto como uma retomada do poder sobre si e um exemplo de profanação dos corpos. Para essa análise serão selecionados trechos que mostram como era a vida das mulheres antes e depois do novo regime, comparando esses dois momentos distintos a fim de entender a docilização dos corpos antes – quando as mulheres tinham os mesmos direitos que os homens na sociedade, porém sofriam violências diárias em suas casas e na rua – e agora – onde o Estado controla suas vidas, mas elas têm uma falsa sensação de proteção, já que, pela propaganda estatal, o número de estupros e a violência contra as mulheres foram reduzidos a zero.

IV.4 O feminino nas distopias críticas: o poder e o controle do corpo (16)
Caroline Valada Becker, carol.valada@hotmail.com

A palavra distopia, nos últimos anos – especificamente no fechamento da primeira década do século XXI – tornou-se frequente. Usado para descrever nossos tempos, o adjetivo “distópico” explica nossas relações sociais e nossa percepção tanto do tempo presente quanto do tempo futuro. Contudo, não apenas no mundo empírico, o distopismo faz-se presente; a arte – cinema, séries de televisão e literatura – revisita a história das distopias clássicas e críticas, ressignificando o que compreendemos por um mundo (neste caso, ficcional) dilacerado por governos autoritários, pela presença de cenários pós-apocalípticos e pela manipulação de grandes corporações. Diante desse cenário artístico ancorado na intertextualidade, transtextualidade e releitura (conceitos essenciais para Linda Houtcheon, Antoine Compgnon e Gérard Genette), este trabalho busca a historicidade da distopia – partindo da tríade clássica We, Admirável Mundo Novo e 1984 – para compreender as especificidades das distopias críticas (conceito estudado por Lyman Tower Sargent e Vita Fortunati) e elege como objeto de estudo a produção romanesca O conto da aia, de Margaret Atwood, publicado em 1985. No romance de Atwood, em um tempo futuro, após embates bélicos, a sociedade (Gilead) é dominada e governada por religiosos fundamentalistas que subjugam as mulheres, abolindo seus direitos, obrigando-as a exercer funções, sempre servindo aos homens: as “esposas” gerenciam a casa; as “Marthas” são serventes; as “aias” engravidam. Tendo em vista a infertilidade da humanidade (certamente o elemento catastrófico da narrativa), as mulheres ainda férteis servem às castas superiores como meros corpos para reprodução. Por meio deste estudo – intitulado “O feminino nas distopias críticas: o poder e o controle do corpo” –, assinalarei, portanto, estas especificidades da distopia clássica tematizadas no romance de Atwood: governo totalitário (aliado à religião); cerceamento da liberdade e da individualidade; signo do feminino (mulheres dominadas, subjugadas e escravizadas na sociedade do futuro); e signo utópico. Além do suporte teórico acerca das distopias e distopias críticas, serão essenciais as proposições de Michel Foucault acerca da biopolítica, uma vez que, n’O conto da aia, as mulheres tornam-se máquinas para reproduzir, controladas, subjugadas e massificadas; esse corpo humano e feminino é controlado por uma soberania política totalitária que rege a “mecânica do ser vivo” por meio de relações de poder.

V. 11 de outubro, das 11h30min às 13h — LOCAL: SALA 217

V.1 A mulher e o pensamento do "humano": textualidades fora da lei (17)
Rita Terezinha Schmidt, ritaschmidt51@gmail.com

A partir da afirmação de Judith Butler, em seu Undoing gender (2004), de que as mulheres ainda não foram de todo incorporadas ao humano, pretendo traçar alguns percursos do conceito de humano no contexto da filosofia antropocêntrica e problematizar o referido conceito a partir do campo conceitual e interdisciplinar definido como pós-humanismo. Em tempos de erosão de clássicas oposições como natureza/cultura, bios/zoe, o desafio não é somente redefinir o humano, mas considerar os deslocamentos operados a partir de sua redefinição com relação ao corpo e à subjetividade feminina.

V.2 Corpos em devir: o apagamento das fronteiras entre o animal e o humano nos contos de Silvina Ocampo (18)
Rafael Eisinger Guimarães, guimaraes@unisc.br

Irmã mais nova da fundadora da revista Sur, Silvina Inocencia Ocampo Aguirre teve sua imagem sempre intimamente relacionada a três das figuras tidas como as mais importantes da cena literária argentina: seu esposo Adolfo Bioy Casares, seu querido amigo Jorge Luis Borges, além de sua irmã mais velha, Victoria. Embora tenha sido posta à sombra de tais figuras, Silvina desenvolveu, ao longo de mais se 50 anos, um interessante e consistente trabalho como poeta e ficcionista. Desta obra, adquirem especial relevância para nós os sete volumes de contos da autora, nos quais as relações entre humanos e não-humanos são trazidas à tona, por vezes atravessadas por elementos do fantástico, do onírico e do duplo. Tendo em vista essas questões, pretende-se aqui verificar como a narrativa de Ocampo problematiza e reconfigura os limites entre animais e pessoas, em um movimento que, a nosso ver, instaura, já nos anos de 1930 e 1940, uma discussão do paradigma antropocêntrico. Para orientar o olhar crítico proposto, lançaremos mão de algumas premissas fundamentais para os estudos animais e os estudos da alteridade, tais como as reflexões de Jacques Derrida desenvolvidas em seu O animal que logo sou (2002), o conceito de devir-animal, elaborado por Gilles Deleuze e Félix Guattari no quarto volume de seu Mil Platôs (1997), bem como as concepções de perspectivismo ameríndio e multinaturalismo apresentadas por Eduardo Viveiros de Castro nos ensaios de A inconstância da alma selvagem (2006).

V.3 O processo de subjugação eurocêntrica dos sujeitos escravizados em A ilha sob o mar, de Isabel Allende (19)
Laissy Taynã da Silva Barbosa, yssial@hotmail.com

O poder foi exercido pelos europeus colonizadores para subjugar o outro, os diferentes, tais como índios, negros, mulheres de qualquer grupo social, entre outras minorias. Tendo em vista esses processos historicamente violentos e excludentes, este trabalho tem o objetivo de investigar o discurso sobre questões étnico-raciais, em especial a partir das personagens femininas negras (e descendentes), na narrativa A ilha sob o mar, de Isabel Allende (2014). A obra se contextualiza em um período que levou milhares de sujeitos escravizados da África para as plantações de cana-de-açúcar sob o discurso de superioridade racial do ocidente. Allende põe em evidência o período de escravidão na ilha de Saint-Domingue (atual Haiti) e a jornada dos personagens até Luisiana, nos Estados Unidos da América. Desse modo, ao longo da narrativa, a autora expõe demandas históricas, sociais e econômicas da ilha, assim como relaciona tais elementos com a luta dos sujeitos para conseguir liberdade e a vida das famílias de grand blancs que saíam da França para cultivar o ouro refinado das Antilhas. A escolha do corpus se justifica pela obra literária ser contemporânea, mas ambientadas na colonização do Haiti pelos franceses e apresentar aspectos acerca do patriarcado, racismo e maternidade. Para tanto, serão utilizadas as reflexões de Jacques Derrida, que problematiza em seus trabalhos a questão do centro, logocentrismo e falocentrismo no pensamento ocidental. A partir do pensamento desconstrucionista do filósofo argelino, os teóricos pós-colonialistas começaram a pensar também sobre alteridade, silenciamento, apagamento de vozes e processos de exclusão dos sujeitos escravizados e marginalizados. Nesse sentido, partindo do interesse em analisar o processo de construção identitária das personagens na narrativa, proponho este trabalho tendo a crítica culturalista como suporte, a partir da qual movimento as questões culturais a partir de Bhabha (2003), Hall (2005) e Spivak (2010). Portanto, apesar da violência à qual os sujeitos escravizados da ilha foram submetidos na narrativa, eles exercem práticas de resistência e reafirmação identitária.

V.4 No caminho entre a utopia e a distopia: um percurso para liberdade feminina (20)
Elenara Walter Quinhones, elenarawalter@gmail.com

No passado, algumas mulheres construíram histórias utópicas, que serviam como instrumento de crítica social, contrariando a lógica androcêntrica da sociedade em que viviam. Esse é o caso do romance A Rainha do Ignoto: romance psicológico (1899), de Emília Freitas, que é delineado sob a proposição de um mundo novo, a Ilha do Nevoeiro, local onde as mulheres podem exercer diversas funções, realizando-se profissional e socialmente, e alcançando a almejada liberdade. Atualmente, os universos distópicos metaforizam valores culturais de uma sociedade pós-moderna imersa em tecnologia e informação. Entretanto, as reivindicações por situações equânimes e pela liberdade feminina, presentes na sociedade idealizada por Freitas, no século XIX, ainda encontram-se válidas no discurso literário contemporâneo. Nesse contexto que abrange o passado e o presente, propomos uma discussão analítica entre o utópico romance de Freitas e o conto distópico “Cidadela” (2013), de Lyra Libero, que trata da liberdade feminina, e, principalmente, a liberdade da mulher em relação ao seu próprio corpo. A forma com que Libero escolhe tematizar, ficcionalmente, essa liberdade é colocando em discussão o aborto e o poder institucional sobre o corpo feminino. Do ponto de vista teórico, essas narrativas permitem que estabeleçamos eixos a partir dos postulados da crítica e teoria feminista no entrecruzamento com questões de identidade, poder e gênero, a partir do paralelo natureza e cultura. Embora, temporalmente, tão afastadas, as duas obras encontram convergência quando rompem com os valores de subjugação patriarcal, que estigmatizam a mulher como procriadora, vinculando-a, sempre, ao papel materno. Elas opõem-se ao determinismo biológico e configuram-se como novas formas de produção utópica e distópica.