ILHA 4
ILHAS POLÍTICAS:
DEMOCRACIA
E SUAS NARRATIVAS
Antonio Barros de Brito Junior
e Antonio Marcos Vieira Sanseverino
“Brasília é uma ilha eu falo porque eu
sei, uma cidade que fabrica a sua própria lei”. Assim era definida a capital
brasileira em 1995 pela banda Os Paralamas do Sucesso. Nesses versos da canção
havia mais do que a acusação de um problema estrutural da política nacional;
havia também, pelo que se observa hoje, uma espécie de visão profética sobre o
modus operandi político global. Atualmente, o que se nota mundo afora é um
recrudescimento dos movimentos nacionalistas e da xenofobia, e, portanto, uma
intensificação das chamadas “políticas de fronteira”. Cada vez mais os países
buscam isolar-se das populações vizinhas a fim de barrar as levas migratórias
de trabalhadores e refugiados, assumindo os traços mais pronunciados de um
Estado policial. Não por acaso, o nefasto “muro do Trump” transforma-se em um
emblema da política internacional contemporânea, que Michael Hardt e Antonio
Negri resumiram no célebre livro Império (2000).
Trata-se,
porém, de um fenômeno que, como já apontava a canção, ocorre também no âmbito
nacional, manifestando-se mais claramente na “lógica do condomínio”, que, de
acordo com Christian Dunker, em Mal-estar, sofrimento e sintoma (2015),
tem a ver com o encastelamento da população de classe média e alta entre os
muros e grades dos condomínios fechados, com uma intensificação e um
consequente recalque violento do mecanismo que produz a subalternidade. Assim,
as democracias esfacelam-se face às crescentes e distintas violações dos
direitos humanos, e o princípio comunitário, libertário e igualitário, que
teoricamente impulsiona a democracia para a comunidade infinita (cf. Jean-Luc
Nancy, Finite and infinite democracy, 2011), cede lugar a uma
renovada mitologia da seguridade (cf. Andrea Cavalletti, La città
biopolitica, 2005), que aprofunda a faceta biopolítica do estado liberal,
subordinando os dispositivos governamentais ao espaço geográfico do poder e
sujeitando os indivíduos ao arbítrio da violência física ou simbólica. Em vista
disso, pode-se falar metaforicamente em um processo de insularização, que
repercute politicamente de diferentes modos, em particular nas clivagens entre
os distintos sujeitos capturados em um antagonismo político ou ontológico
qualquer, acirrando as diferenças e delimitando zonas de confluência ideológica
de acordo com características sociais, culturais, econômicas, raciais e de
gênero.
Neste contexto, a literatura e o cinema
apresentam-se ao mesmo tempo como sintoma e como ruptura. Por um lado, as
narrativas literárias e cinematográficas percorrem os diferentes espaços,
oferecendo enquadramentos tão diferentes quantas são diversas as experiências
de vida em qualquer um dos lados das fronteiras (ou até mesmo em seus
interstícios). Por outro lado, essas narrativas conjuram o princípio
democrático da igualdade e da emancipação, promovendo subjetividades e
identificações mediante a potência poética do fazer ver, fazer dizer e fazer
sentir (cf. Jacques Rancière, Le partage du sensible, 2005). Em um
caso, o esquadrinhamento ontológico das diferenças em chave antagônica, num
horizonte político de hegemonia e contra-hegemonia. No outro caso, a ruptura
com os ditames sociais e políticos de quem pode e quem não pode fazer uso da
palavra poética para fins de representação, subjetivação e reivindicação
política. Em ambos os casos, a literatura mostra-se como o ponto de
convergência do político, na medida em que restaura, temática ou
operacionalmente, os princípios democráticos subjugados pelo policiamento
político praticado pelos Estados e grupos hegemônicos e autoritários.
Neste simpósio, serão acolhidos trabalhos
que de alguma forma estabeleçam as conexões entre a literatura, o cinema e a
democracia, sejam aqueles que abordam sob a ótica identitária os diferentes
processos de insularização e os diferentes confrontos deles decorrentes, sejam
ainda aqueles que entendem as narrativas literárias e cinematográficas como um
atravessamento de espaços e fronteiras, ou seja, como uma redefinição política
do sensível através de uma repartilha poética dos sujeitos e dos seus lugares
de pertencimento na esfera pública e no campo político.
HORÁRIOS E LOCAIS DAS APRESENTAÇÕES
I. 9 de outubro, das 11h30min às 13h — LOCAL: SALA 205
I.1 Questões de princípio: literatura, política
e representação, Antonio Barros de Brito Junior
I.2 Poesia, a balbúrdia no pensamento:
reunir-se para resistir, Diego Lock Farina
I.3 A linguagem do amor: uma sílaba fraturada,
uma imagem transbordada, Cláudia Luiza Caimi
II. 9 de outubro, das 16h às 17h30min — LOCAL: SALA
205
II.1 A ironia enquanto artifício da redefinição
política, Jefferson José Pereira Figueiredo
II.2 O fazer literário e a literatura em Elizabeth
Costello, Rodrigo Gonçalves Lima
II.3 Memórias de um sobrevivente, o real e a
ficção, Tiago Lopes Schiffner
III. 10 de outubro, das 10h às 11h30min — LOCAL: SALA
214
III.1 A caça às bruxas e a política: uma análise
comparativa da peça As Bruxas de Salém, de Arthur Miller, e sua
adaptação cinematográfica, Luiza Pitrez Gressler e Thamise Silva da Rocha
III.2 Orgulho, preconceito e representação: o
panorama histórico e social da sociedade inglesa de meados do século XIX em
Jane Austen, Patrini Viero Ferreira
III.3 O enclausuramento e silenciamento de Maria
do Rosário Imaculado dos Santos em uma sociedade branca, racista, patriarcal e
hegemônica, Luciane de Lima Paim
IV. 10 de outubro, das 16h às 17h30min — LOCAL: SALA
205
IV.1 Negro e pronto: a representação do negro na
poética de Cuti, Jacqueline de Almeida
IV.2 “Aquela coisa de sempre”: metodologia
crítica e continuidade histórica, Giovani Buffon Orlandini
IV.3 As mulheres no espaço da fábrica: Parque
industrial, de Patrícia Galvão, Bárbara Loureiro Andreta e Rachel
Loureiro Andreta
V. 11 de outubro, das 11h30min às 13h — LOCAL: SALA
205
V.1 Vozes narrativas em contra-canto: a
literatura de testemunho na ficção brasileira pós-64, Abilio Pacheco de
Souza
V.2 “Para proteger os justos da justiça”:
política, testemunho e ficção em Redoble por Rancas, Rodrigo Cézar
Dias
V.3 Sebald e o peso ético-estético da
literatura de restituição, Davi Alexandre Tomm
VI. 11 de outubro, das 16h às 17h30min — LOCAL: SALA 206
VI.1 “Ilha das Flores”: uma leitura da imagem
através de Jacques Rancière, Marinice Argenta
VI.2 “Vai ter luta?”: Aquarius e algumas
narrativas sobre o cenário político brasileiro no pré-golpe de 2016,
Octávio Augusto Linhares Garcia Reis
VI.3 Desterro e passagem do tempo em A cidade
onde envelheço (2016), de Marília Rocha, Amanda Lauschner
RESUMOS DAS COMUNICAÇÕES
I. 9 de outubro, das
11h30min às 13h
— LOCAL: SALA 205
I.1 Questões de princípio:
literatura, política e representação (1)
Antonio
Barros de Brito Junior, antbarros@gmail.com
Tradicionalmente a ideia de uma
literatura política está associada à noção de engajamento. Tomar partido, seja
o próprio, seja o de outrem, consiste, para a corrente de pensamento político
herdeira do materialismo histórico e de suas linhagens políticas mais ou menos
ortodoxas, em representar as aflições, desenganos, ideologias, anseios, reveses
próprios (o sujeito enquanto representante de uma classe) ou dos subalternos (o
sujeito como mediador intelectual entre as classes). Nesse sentido, a política
da literatura está diretamente associada ao espelhamento, em chave retórica e
mimética, dos vários segmentos sociais, em suas diferentes (próximas ou
distantes) relações históricas e contextuais. Porém, muitas vezes esse
entendimento da política literária favorece o engessamento das diferenças e o
esgarçamento da desigualdade. Logo, nesse viés, o engajamento
político-literário pouco se diferencia da afirmação quase metafísica de um
regime de possibilidades (o esquadrinhamento sociológico dos sujeitos) que, em
última análise, parece contrariar a potência poética do indivíduo. Trata-se,
enfim, de uma literatura que representa o representante ou que representa o
representar.
Contra isso, a voz de Jacques Rancière
eleva-se de modo incontestável: primeiramente, refutando o viés
retórico-mimético ao qual a literatura política supostamente se subordina, como
se houvesse uma espécie de regime estético único e determinista para o desenvolvimento
poético do dano político. Em segundo lugar, Racière envolve a literatura e a
política de modo inextrincável, de forma que as questões relativas ao
engajamento político não são decorrentes da mimese, mas sim da poiesis (ou,
em outras palavras, da aisthesis), ou seja, de pôr em relação modos
de ver, fazer, criar agenciamentos estéticos que reafirmam uma subjetivação
política com base na igualdade e na emancipação. Nesta comunicação, portanto,
abordaremos as questões de princípio envolvidas na subjetividade política no
plano estético-literário, dando especial destaque ao problema da representação,
o que ela comporta e os diferentes trânsitos da letra nas altercações
intersubjetivas naquilo que Rancière define como “cena política”.
I.2 Poesia,
a balbúrdia no pensamento: reunir-se para resistir (2)
Diego
Lock Farina, diegolockfarina@hotmail.com
Uma cena insular se faz presente quando
as políticas nacionalistas, recém fortalecidas e intolerantes, reafirmam
fronteiras: xenofobia, estado policial, muros e encastelamento são palavras
de ordem da volta à ilha, isola, isolar-se.
Afirmar a fronteira é entretanto tensionar o front:
front da guerra liberal pela qual o mercado dita e promete segurança, ao preço
que bem sabemos. Mas cabe ao termo front outros
sentidos: faire front, em francês, quer dizer “reunir-se para
resistir”. Courber le front (a testa) é “submeter-se”,
enquanto que avoir le front é “ter audácia de”. Um jogo entre
expressões para irrevogável pergunta: que democracia há na ilha? No mar que
envolve e ameça a isola, barcos da Líbia desaparecem antes da costa
italiana. Notícia de naufrágios que, por um dia, o jornal en-cadeia. Gonçalo
Tavares lembrava o ditado antigo: “ao inventar-se o barco, inventou-se o
naufrágio”. Os direitos humanos (cada vez mais para humanos de direita), as
políticas de diferença e o princípio comunitário, solidário, igualitário tendem
juntos a também naufragar? Faire front a isso, com audácia e
risco, a partir de novas “partilhas do sensível” (RANCIÈRE, 2005) anuncia-se
como tarefa. E se a tarefa demanda impetuosidade, demanda portanto poesia.
Levante, balbúrdia no pensamento: a poesia resiste ao movimento de buscar
segurança; é febre, festa, maltrata a língua, afia estilos, esburaca, faz sair
fora de si, sobretudo ao associar-se, num elã, à filosofia (NANCY, 2000). Liber,
no latim: livre e livro - feliz genealogia. Assim, a literatura arrasa o espaço
da fronteira, mesmo num tempo em que se expulsam outra vez os poetas da
pólis-isola. À deriva, questionamos: nunca foi, nesses últimos anos, tão
crucial – como resposta responsável – reafirmar o “agonismo” (MOUFFE, 2015)
entre direita e esquerda? Nós/eles: adversários, porém não inimigos. Na crise
profunda, um partage autêntico devém urgente: “uma divisão
entre os que desejam se arrastar dentro dos velhos parâmetros e os que têm
consciência da mudança necessária” (ZIZEK, 2017, p. 170). Pois desconfiemos das
políticas de consenso: para triunfar, a democracia exige um choque entre
posições políticas legítimas. Se tais questões ora parecem desconexas, isso
ocorre porque a medida que esse ensaio busca é senão poética, irruptiva. Poesia
de um faire front que denega a submissão, em nome do ser que
vem - o “ser qualquer” [qualunque] (AGAMBEN, 2013). Entre pertenço,
logo derivo e poeto, logo emancipo é que esse ensaio,
afora, inscreve-se.
I.3 A linguagem do amor: uma sílaba
fraturada, uma imagem transbordada (3)
Cláudia Luiza Caimi, claudialuizacaimi@yahoo.com.br
Esta comunicação
pretende compartilhar uma leitura/reflexão da obra El infarto del Alma,
que a escritora chilena Diamela Eltit publicou, conjuntamente com a fotógrafa
Paz Errazuriz, em 1999. O livro é um dizer, uma fala, uma música, um jogo entre
idiomas e caligrafias, um agenciamento em que se cruzam recursos polinizados
pela imagem e pela palavra, entre o vivido/real e o lido/escrito. Eltit escreve
a partir de uma nova estrutura na qual o descentramento, que se origina na
fragmentação, inclui desterritorializações e redesenhos rizomáticos. Seu diário
conversa com diversos gêneros: carta, ensaio, fragmento autobiográfico,
transcrição de sonhos. A escrita oferece uma multiplicação discursiva em rede,
não há hegemonia de gênero discursivo ou imagético. Também não há linhas
divisórias claras que prolongam a distinção entre ficção e realidade. O que há
são mesclas divisórias, cumplicidades, referências mútuas. Tudo inicia com uma
viajem que a escritora faz, acompanhando a fotógrafa, ao Hospital Siquiátrico
del Pueblo de Putando, nos arredores de Santiago, no Chile. Paz Errazuriz vai
tirar fotos dos casais de namorados, encerrados no hospital psiquiátrico como
pacientes crônicos, indigentes e mutilados. Pacientes esquecidos, entregues “a
la caridade rígida del Estado”. Dessas fotos e da experiência dessa visita
emerge uma foto-e-grafia que interpela a condição do homem, a partir do homem
amoroso.
O corpo narrativo
engendrado na tessitura da memória e seu enquadramento fotográfico desafia a
escrita literária e o cerceamento do “amor louco”, num procedimento de narração
em que se desdobram questões de cunho ético e político. Os loucos enamorados do
hospital psiquiátrico introduzem, para a autora, a fratura que carrega consigo
todo ser humano, a falta, num solo ruinoso e marginal, e, ao mesmo tempo,
luminoso, enquanto revelador do destino humano. Apesar da miséria, do
anonimato, da solidão, do estado de deformidade e extravio que cercam os
alienados, eles amam, ocorre o amor neste espaço de todo esquivo para os
sentimentos. São eles sujeitos animados pela falta, pela ausência que se
apresenta como uma fatalidade e pelo protagonismo do desejo, que produz uma
narrativa, a história. O louco, mesmo tendendo a fundir-se, a confundir-se, com
o Outro, já que ausência de limites é a grande falta que marca o
desaparecimento de fronteiras, é o corpo no qual a potência amorosa apresenta
sua plenitude e tática, pois nela os signos amorosos abrem mão para um universo
próprio, em que a realidade está ausente e presente ao mesmo tempo. Como diz a
autora “Los asilados son materialmente un otro, abiertos a camuflarse (a
refugiarse) al interor de cualquier cuerpo, a adentrarse en cualquier mente, a
habitar em el otro a cualquier costo”.
A linguagem do amor,
cuja escrita emerge de um espaço deslocado do eixo comum de produção das
imagens amorosas e mundanas, espaço de reclusão e exclusão, explicita-se,
então, nos termos de uma crítica política, em que o estético promove a
desestabilização das visões homogêneas do mundo e da própria literatura,
possibilitando a atenção aos espaços e condições em que os textos criam desvios
e vazios, vinculando-se a modos de vida e à construção de novas subjetividades,
visibilidades e inteligibilidades do mundo.
II. 9 de outubro, das
16h às 17h30min
— LOCAL: SALA 205
II.1 A ironia enquanto
artifício da redefinição política (4)
Jefferson
José Pereira Figueiredo, jjpfig@gmail.com
Ao
pensar as narrativas contemporâneas, a quebra de padrões estabelecidos (seja em
abordagens, temas, tópicos, entre outros) se faz visível. O período atual,
chamado de pós-modernismo por alguns teóricos, se faz plural e joga com estes
padrões ao reorganizá-los e misturá-los com o intuito de mostrar suas falhas e
lacunas, quebrando barreiras e trazendo novas questões a velhos fatos. Ao
redimensionar as formas, por exemplo, o romance pós-modernista questiona de
forma irônica o status quo e as grandes narrativas/ideias totalizantes. E se o
faz de forma irônica, é, pois, consciente de ser um produto histórico tanto
quanto outras leituras e faz-se, assim, consciente de seus limites e
contradições. Portanto, a ironia serve como tática de abordagem e alerta para
que não se caia no risco de se criar uma narrativa totalizante, sem que se
negue suas idiossincrasia ou as contradições que dela surgem.
Assim, a teórica canadense Linda Hutcheon
aponta a metaficção historiográfica como uma das vertentes desta abordagem
irônica no pós-modernismo. Quebrando barreiras em vários níveis (ao nível
histórico, ao tratar sobre as leituras que temos do passado; estrutural, ao
unir o gênero romance histórico e a metanarrativa para criar um novo efeito e
poder gerar a nova leitura do fato histórico), o romance de metaficção
historiográfica se recusa a resolver as contradições do que Lyotard chama de
grandes narrativas totalizantes. Antes, seu objetivo é a problematização da
questão ao dar voz aos excluídos ou àqueles que nestas grandes narrativas não
tiverem voz, aqueles os ex-cêntricos. Desta forma, o que se faz é apresentar
uma nova leitura, sem destruição das existentes, uma vez que estas novas se
fazem conscientes do fato de que são também passíveis de desconstrução e
reformulação elas mesmas.
Neste ponto, o uso da ironia como
redefinição política se faz presente. Uma vez que não há mais padrões
intocáveis, e mesmo as críticas dos ex-cêntricos se faz passível de
questionamento de quais ex-cêntricos ela representa, o ironia surge como
ferramenta retórica desta consciência de lugar dentro da esfera do saber.
Novamente, a ironia serve enquanto mecanismo de via dupla e contraditório ao
desconstruir a visão estabelecida ao mesmo tempo em que se impõe como limite de
consciência para aquele que escreve sobre a sua posição enquanto agente
político.
II.2 O fazer literário e a
literatura em Elizabeth Costello (5)
Rodrigo
Gonçalves Lima, rglima_@hotmail.com
A
escrita é um processo criativo, mas também uma proposta de reorganização da
experiência de mundo através da linguagem. Em J. M. Coetzee, esta parece ser a
busca do neutro, do impessoal, da presença de
uma ausência – proceder que, muitas vezes, leva o processo narrativo
coetzeeano a uma aproximação com outros escritores, como Kafka, cuja presença é
sugerida pelo próprio autor ao longo da obra Elizabeth Costello. Elizabeth
Costello, objeto de análise do presente trabalho, aparece envolta numa
espécie de nuvem kafkiana – tanto na forma de citação direta, palestra um, como
na forte influência do procedimento de escrita, palestra oito. Essa nuvem
parece, de alguma maneira, conduzir o fazer literário de J. M. Coetzee em direção
às proposições sobre escrita e literatura trabalhadas pelo autor em sua obra.
Como escreve o próprio autor: “contar uma história é criar uma atmosfera e
sustentar a duração de um estado de sonho induzido” (COETZEE, 2004). Nesse
estado, nem o eu-lírico, nem as armas socioculturais importam: o que está em
pauta parece ser outra questão, uma espécie de terceiro elemento que se
introduz furtivamente e pressiona a literatura até os limites da linguagem.
Elemento que traz o impessoal, elemento que alcança o fora,
elemento que se coloca como estrangeiro ao sujeito e ao mundo: o neutro,
“momento em que a literatura poderia ser agarrada. Mas nesse ponto, ela não
seria somente uma escrita branca, ausente e neutra; seria a própria experiência
da neutralidade” (BLANCHOT, 2013). Assim, o texto deve ser estudado como escritura,
o que implica a compreensão da exigência de que, ao escrever, deve-se “atingir
o ponto no qual somente a linguagem age” (BARTHES, 2004). É a linguagem que
fala, e não o autor, e a necessidade da impessoalidade faz com que o autor seja
suprimido: o que está no texto é a linguagem. Os modos de entrada nesse neutro
da língua conferem à literatura um tipo especial de engajamento, talvez, como
já disse Derrida, o mais irresponsável deles – o de poder dizer tudo e nada.
Desse modo, crê-se na literatura como “potência máxima da linguagem” (DERRIDA,
2014), do excesso, do desejo de não renunciar a nada, da possibilidade de não
estar colada a uma única realidade, da impossibilidade, do atravessamento, do
não se encontrar fixada num só lugar, do por vir. A busca da literatura
dentro deste jogo paradoxal de constante transgressão (profanação) e
continuidade (renovação) da linguagem, ou seja, um jogo de contínua
inalcançabilidade, de eterno esforço ao irrealizável, de presença-ausente, de
neutralidade.
É desse abismo neutro que convém se
abeirar para, então, aproximar-se do modo como J. M. Coetzee atualiza,
através da escritura, as exigências do fazer literário ao qual se propõe. Esta
pesquisa procura perguntar-se de que maneira o autor busca esse ponto de
neutralização das estratégias discursivas do romance convencional e transforma
o literário numa busca pela experiência essencial da linguagem, numa literatura
que carrega em si a própria questão da literatura.
Vale lembrar que essa vertigem ao neutro,
apesar do nome, não se coloca no lugar de isenção do tomar posição, e sim
permite um lugar fora da imposição de uma verdade única e justificável; uma
posição sem “eu”, passível de pertencimento de “todos” e de “ninguém”. Tontura
de um discurso sem dúvida permeado pelo fazer político, mas que não se sujeita
a ordem desse fazer, ou melhor, um discurso que, assim como a escritura e a
literatura, desafia ou suspende a própria lei ao se produzir.
II.3 Memórias de um
sobrevivente, o real e a ficção (6)
Tiago
Lopes Schiffner, tiago_roll@yahoo.com.br
Em 2001, Luiz Alberto Mendes
publica Memórias de um sobrevivente, manuscrito de um romance
autobiográfico, engavetado por quase dez anos. A narrativa se refere à
infância, à adolescência e ao início da vida adulta de um rapaz que vê o
banditismo como uma alternativa para contornar os limites econômicos e realizar
os seus anseios de liberdade. Luiz Alberto trata das condições de vida de um
jovem pobre cujo imaginário persegue o ideal de consumo e de diversão
propagandeado nas mídias em desenvolvimento nos anos 60 e 70. Contudo, a sua
escrita não se limita a apenas apresentar essa realidade. Há um empenho
literário que acompanha e transcende as especificidades temáticas. Por isso, o
estudo dos elementos estilísticos esclarece I) o quanto forma e conteúdo andam
juntos na composição das Memórias II) o quanto a análise
estrutural pode iluminar traços decisivos da historicidade com os quais o
personagem se depara e que definem os impasses do período abarcado pelo texto.
Portanto, a finalidade deste artigo é investigar a formalização do relato e
como ela incorpora e responde os dilemas enfrentados.
III. 10 de outubro, das
10h às 11h30min
— LOCAL: SALA 214
III.1 A caça às bruxas e a
política: uma análise comparativa da peça As Bruxas de
Salém, de Arthur Miller, e sua adaptação cinematográfica (7)
Luiza
Pitrez Gressler e Thamise Silva da Rocha, luiza.gressler@acad.pucrs.br;thamise.rocha@acad.pucrs.br
Em 18 de maio de 2017, Donald Trump
publicou em sua conta do Twitter que "esta é a maior caça às bruxas à um
político na história americana!", aludindo às críticas e acusações sobre
seu recente mandato. Buscando se autodefender, a menção à caça às bruxas no
discurso de Trump refere-se, de forma distorcida, ao trágico episódio conhecido
como os julgamentos às Bruxas de Salém. Realizados entre 1692 e 1693 na então
recém fundada colônia de puritanos da Nova Inglaterra em Salém, Massachusetts,
o ocorrido resultou na execução de dezenas de inocentes falsamente acusados de
praticar bruxaria. A referência alegórica a um dos maiores e mais fatídicos
casos de histeria coletiva na história norte-americana fora mais
apropriadamente utilizada previamente, nos anos 1950, pelo escritor e
dramaturgo Arthur Miller. Por sua suposta ligação ao movimento comunista,
Miller e demais profissionais da indústria cinematográfica estadunidense
tornaram-se principal alvo das investigações do senador Joseph McCarthy, em sua
campanha anticomunista pós-Guerra Fria. A resposta de Miller veio com o
lançamento da peça As Bruxas de Salém (The Crucible), em 1953, texto dramático
que carrega uma suposta crítica alegórica à perseguição pessoal que o escritor
vinha sofrendo. Quarenta e três anos depois, a peça foi adaptada para o cinema,
com roteiro do próprio Miller e direção de Nicholas Hytner, com os atores
Daniel Day-Lewis e Winona Ryder nos papéis principais. Com base nesta retomada
histórica, o presente trabalho busca discutir e comentar, pela literatura
comparada, questões relacionadas à adaptação cinematográfica de As Bruxas de
Salém, entre elas, se esta transmite a carga alegórica incorporada ao texto
dramático original; se é possível distinguir sua intenção subversiva por trás
do envolvimento romântico do protagonista e a antagonista. Além disso,
questiona-se se a acusação política subtextual pode promover relações
alegóricas com o passado, o momento atual e doravante.
III.2 Orgulho, preconceito e representação:
o panorama histórico e social da sociedade inglesa de meados do século XIX em
Jane Austen (8)
Patrini
Viero Ferreira, patyvii02@hotmail.com
As mulheres foram, ao longo das épocas,
sujeitadas a duas posições básicas: confinadas ao âmbito doméstico, eram elas
as responsáveis pelo bom funcionamento da casa, o que incluía não apenas os
cuidados com os filhos e com o marido, mas também os afazeres relativos àquele
contexto; de outro lado, por serem vistas como uma espécie de objeto de
contemplação, de seu marido e da própria sociedade, tinham o dever de manter
uma boa aparência e modos dignos de uma dama. Levando em conta estes percursos
culturais e históricos em volta da figura feminina, o presente artigo tem a
finalidade principal de reconhecer como a figura feminina é retratada dentro da
sociedade inglesa de meados do século XIX, tomando como base a obra da autora
Jane Austen, mais precisamente o romance Orgulho e Preconceito (2012). Vale
destacar, que a figura colocada em destaque aqui é a protagonista do romance,
Elizabeth Bennet, na qual a análise se deterá mais profundamente se comparada
às outras personagens mencionadas. Para alcançar o objetivo pretendido, a
metodologia consistirá na seleção e análise de fragmentos dentro da obra de
Austen, no intuito de aproximar estes trechos dos costumes e valores da época,
localizando o texto dentro do tempo histórico e social. A partir destes
processos, os resultados obtidos comprovam que Orgulho e Preconceito pode ser
encarado como um retrato da sociedade na qual Austen inseria-se, e que os
fatores externos influenciaram de maneira profunda na construção do texto,
principalmente no que diz respeito à representação do feminino na obra.
III.3 O enclausuramento e
silenciamento de Maria do Rosário Imaculado dos Santos em uma sociedade branca,
racista, patriarcal e hegemônica (9)
Luciane
de Lima Paim, lucianeletras15@gmail.com
São diversas as maneiras como a mulher
foi silenciada pela sociedade e pela democracia patriarcal, em séculos
passados, e é assustador como ainda tentam silenciá-las. Seja na política, na
cultura ou na história, sempre tentaram calar o feminino. Muitas vezes, assim
como no restante das relações sociais, na literatura as restrições às mulheres
acontecem de forma explícita e não explícita. São inúmeras as obras
que apresentam a mulher como um objeto, e não como um sujeito. Entretanto, na
literatura contemporânea, são muitos os autores que apresentam o feminino como
um sujeito. Em todas as suas obras, Conceição Evaristo mostra como a mulher era
e ainda é representada na sociedade, no ambiente familiar e na academia. A
autora, em Insubmissas Lágrimas de Mulheres, dá voz as suas
personagens, as quais são todas negras, deixa-as contarem suas histórias
vivenciadas. Por ter um vasto elenco feminino, para este estudo nos
concentramos em analisar a vida de Maria do Rosário Imaculada dos Santos,
personagem que conta como viveu sem voz desde o dia que foi roubada dos pais.
Desta forma, a ideia principal desse estudo é identificar como a personagem
escolhida é silenciada e privada da vida social, devido aos padrões patriarcais
impostos pela sociedade. Metodologicamente, foram analisadas passagens do conto
que apresentam a vida enclausurada e silenciosa de Maria do Rosário. Assim, ao
final da análise, identifica-se que a personagem escolhida foi vítima de uma
democracia patriarcal e branca que não dava voz, espaço e oportunidades aos
negros. Como nos apresenta Aristóteles, em Política,
antigamente, a sociedade era dividida por homens livres e escravos, e por não
terem cidadania as mulheres se juntavam aos negros em questão de ausência de
direitos. É visível que a mulher é sempre reduzida a nada, porque vejamos: a
sociedade era dividida em homens livres e escravos; os sem cidadania eram os
negros, as mulheres e as crianças. Contudo, os negros poderiam obter a
alforria, logo seriam livres. As crianças se fossem homens, iam crescer e
adquirir cidadania. Mas e as mulheres? Independentemente da situação as
mulheres continuariam sem voz e sem direitos. E outra questão inquietante: Se a
mulher branca já era silenciada por causa do gênero, o que restava para a
mulher negra? Nada? Ela simplesmente não faria parte da sociedade, não
existiria? Sim, foi essa a vida de Maria do Rosário, uma vida quase sem
existência.
IV. 10 de outubro, das
16h às 17h30min
— LOCAL: SALA 205
IV.1 Negro e pronto: a representação do
negro na poética de Cuti (10)
Jacqueline de Almeida, jacquelinealmeida55@yahoo.com.br
A presente comunicação
se propõe a analisar a representação do negro na escrita poética de Luiz Silva,
o Cuti. Considerado um dos mais destacados intelectuais negros da
contemporaneidade, Cuti, no exercício de sua poesia, tem proposto uma
representação da negritude que se contrapõe às imagens negativas e
estereotipadas construídas pela tradição literária brasileira: o cânone. Tomado
por uma consciência étnica afrodescendente assumida, o escritor de Ourinhos (SP)
rompe com o silêncio do racismo, nas suas mais variadas formas, e produz um
discurso no qual emerge um enunciador que se quer ou se assume negro. Assim,
apoiado num ponto de vista interno e com uma postura combativa, política e
ideológica, Cuti também pressupõe a presença de um leitor/interlocutor negro.
Diante disso, oferece ao seu leitor ideal uma escrita poética empenhada com a
releitura da história e da memória coletiva do afro-brasileiro. Partindo da
perspectiva teórica do campo dos Estudos Culturais em Educação e dos Estudos
Étnico-Raciais, este estudo, primeiramente, examina o conceito de literatura
afro-brasileira ou negra e os critérios de configuração desta literatura, com
ênfase no ponto de vista enunciativo: do sujeito étnico. Num segundo momento,
verifica-se de que modo se constrói a representação do negro nos respectivos
poemas “Sou negro” (1978), “Trincheira” (2002) e “Negroesia” (2007), ambos
relacionados na Antologia de Poesia Afro-brasileira: 150 anos de consciência
negra no Brasil, organizada por Zilá Bernd (2011). Uma conclusão preliminar
deste estudo aponta para uma representação positiva e valorizada do negro, além
de um discurso marcado por um sentimento de resistência frente às feridas do
passado e à discriminação racial do presente. Também há que considerar que a
literatura produzida por escritores afro-brasileiros, aqui representada por
Cuti, visa atuar no processo de (re)construção identitária do sujeito (o
leitor) negro, bem como na conscientização e no resgate de sua autoestima.
IV.2 “Aquela coisa de
sempre”: metodologia crítica e continuidade histórica (11)
Giovani
Buffon Orlandini, giovani.b.o@hotmail.com
Ao preparar o terreno para a leitura
crítica dos romances maduros de Machado de Assis, Roberto Schwarz estabeleceu
as bases do impasse enfrentado por romancistas brasileiros em meados do século
XIX: adequação das tradições formais narrativas importadas do mundo burguês
europeu a uma realidade social de nação periférica fortemente marcada pela
herança do período colonial, sobretudo pelo estatuto da escravidão e seus
desdobramentos perversos. O impasse se estabeleceu, portanto, na
incompatibilidade ideológica existente entre o modelo estético e a realidade
local decantada, gerando emSenhora (1874), obra elencada pelo
crítico como exemplo do fenômeno, incongruências formais que dão notícia da
própria incompatibilidade em si, com seus ecos na forma, bem como da lógica
local de funcionamento social. Na assertiva canonizada por certa tradição
crítica brasileira, trata-se do argumento que aponta o quanto “o revezamento
de pressupostos incompatíveis quebra a espinha à ficção” (SCHWARZ, 1992).
Este trabalho propõe um deslocamento histórico desse achado crítico,
baseando-se na suspeita de que esse impasse acompanhou por longa data nossos romancistas
que, como Alencar, demonstraram vocação realista para retratar questões
nacionais. Assim, trata-se de verificar a validade ou não do achado crítico de
Schwarz sob a luz de um objeto literário e de um contexto diversos, a saber, o
romance Jubiabá (1935), de Jorge Amado, gestado no ambiente de
polarização ideológica e de modernização conservadora dos primeiros anos do
primeiro governo Vargas (BUENO, 2006). Ainda que os referentes se alterem
substancialmente – o modelo importado de romance abarcado por Amado não é o
mesmo de Alencar, bem como o Brasil à beira do Estado Novo não se orienta sob
as mesmas bases do Brasil do Segundo Império, para ficarmos naquilo que e mais
evidente – parece existir certa similaridade entre as obras em suas dinâmicas de
representação do tempo histórico e da realidade local que, uma vez levadas a
cabo as mediações exigidas pelo deslocamento temporal, atestam algo mais do que
a perenidade do método crítico: a não superação de embaraços políticos e
sociais a despeito das mudanças institucionais ocorridas. O intuito desse
trabalho é, desse modo, delinear as mediações cabíveis para a verificação da
hipótese investigativa acima exposta, tomando como referente uma leitura
crítica dessas obras em seus contextos específicos a partir do prisma
metodológico estabelecido por Roberto Schwarz.
IV.3 As mulheres no espaço
da fábrica: Parque industrial, de
Patrícia Galvão (12)
Bárbara
Loureiro Andreta e Rachel Loureiro Andreta, barbaraandr@hotmail.com; rack_and@yahoo.com.br
O livro Parque industrial, de
autoria de Patrícia Galvão (conhecida como Pagu), que além de escritora era
militante política, foi elaborado em 1932 e publicado em 1933, sob o pseudônimo
de Mara Lobo - por exigência do Partido Comunista. Parque industrial foi
redigido em um período marcado pelas primeiras mudanças no que se refere ao
fomento da industrialização no país, pela passagem de uma economia
agrário-exportadora para outra, a urbano-industrial. A obra denuncia a
exploração e opressão a que os trabalhadores e, especialmente, as mulheres,
estavam submetidas nas indústrias têxteis de São Paulo, no início da
industrialização no país, período em que os trabalhadores ainda não estavam
segurados pelas leis trabalhistas e que, nesse contexto, também não tinham
nenhum respaldo no que diz respeito a direitos humanos no ambiente laboral.
Tendo como pano de fundo as questões referentes à historiografia do trabalho,
este breve estudo pretende fazer uma contextualização histórico-social do
espaço onde as ações se passam e, assim, discutir as precárias condições de
trabalho a que as mulheres estavam submetidas, bem como as tentativas de
resistências surgidas. Nesse aspecto, as discussões terão como foco as
personagens Rosinha Lituana, Otávia e Corina, uma vez que essas três personagens
são representativas das mulheres operárias no início da industrialização no
Brasil. Rosinha Lituana era estrangeira, operária com aguda consciência de
classe e militante do Partido Comunista – que tenta, em seus curtos intervalos,
disseminar as ideias do partido entre as colegas de trabalho (e, por isso, é
considerada “agitadora”); Otávia, trabalhadora também envolvida com o movimento
operário, que toma a frente do movimento sindical, e Corina é a personagem que
representa a face mais cruel da vida das trabalhadoras – aprendiz de
costureira, jovem e mulata, iludida por uma promessa falsa de casamento, acaba
engravidando, caindo na prostituição e, por fim, termina seus dias na prisão.
V. 11 de outubro, das
11h30min às 13h
— LOCAL: SALA 205
V.1 Vozes narrativas em
contra-canto: a literatura de testemunho na ficção
brasileira pós-64 (13)
Abilio
Pacheco de Souza, abiliopacheco@gmail.com
A literatura produzida no século XX, que
apresenta pontos de contato com a realidade histórica e se distancia de algum
modo do ficcional, apresenta duas tendências de produção e de aparato teórico:
uma produzida a partir de relatos como os de Primo Levi e de Anne Frank,
tematizando a experiência traumática dos campos de concentração, da Shoah e
dos resultados do totalitarismo Nazista de um modo geral; e a outra produzida a
partir de relatos coletados ou coligidos a partir da violência contra
populações ou grupos não-hegemônicos na América Latina ou mais precisamente na
América Hispânica, de que é exemplo quase paradigmático o livro de Rigoberta
Menchu. Embora possa haver pontos de contato entre essas tendências, a
distância é tão significativa que o Professor Márcio Seligmann-Silva aponta
para a intraduzibilidade dos conceitos: Zeugnis (em língua
alemã) e Testimonio (em língua espanhola). Seligmann-Silva
enfatiza ainda que o testemunho (seja Zeugnis, sejaTestimonio)
é uma forma de manifestação da literatura do século XX, que se situa na cisão
entre o ficcional e o real, e é um discurso para o tribunal da História. Boa
parte da narrativa literária romanesca produzida no Brasil, notadamente, na
segunda metade do século passado, ora se aproxima de uma tendência, ora da
outra. Consequentemente ora demanda uma leitura crítica ora demanda outra. Há,
entretanto, algumas obras produzidas sobre a ditadura militar que nos parece
escapar destes dois polos exatamente por se afastar de um aspecto muito caro à
literatura testemunhal (hispânica ou alemã): a verdade narrativa empírica. Em
seu lugar, algumas narrativas optam por mascaramento ficcional de um narrador
letrado em contraponto a um discurso narrativo com “el efeito de
oralidad/verdade” (Achugar). Nesta comunicação, procuramos debater este aspecto
com vistas a se pensar em uma Literatura de Testemunho (em português)
considerando a produção literária romanesca sob e sobre a Ditadura Militar de
64.
V.2 “Para proteger os
justos da justiça”: política, testemunho e ficção em Redoble
por Rancas (14)
Rodrigo
Cézar Dias, rodrigocezardias@gmail.com
O romance Redoble por Rancas,
publicado por Manuel Scorza em 1970, constitui-se, segundo afirma o autor em
nota inicial, enquanto “crônica exasperantemente real de uma luta solitária”. A
obra, que integra uma pentalogia intitulada A guerra silenciosa, dá
forma literária a um levante de campesinos peruanos de algumas aldeias quase
desconhecidas contra as forças militares a serviço da oligarquia local e da
mineradora multinacional Cerro de Pasco Corporation. Ao fim da mesma nota, o
autor acrescenta que alguns nomes foram modificados quando da construção do
romance com o intuito de “proteger os justos da justiça”. A obra
organiza-se em torno de dois polos principais, que se cruzam no decorrer do
romance. O primeiro deles é atravessado pela cerca da Cerro de Pasco
Corporation, que transpassa o caminho dos pequenos pecuaristas ranquenhos,
cercando pastos, montanhas e lagos e impedindo que os produtores pudessem
alimentar suas ovelhas no campo outrora comunal. O segundo polo consiste na
tentativa malograda de assassinato do latifundiário e juiz Don Montenegro por
Héctor Chacón, uma liderança campesina da aldeia de Yanacocha que visava dar um
ponto final aos desmandos do tirano local. Posto isso, o presente trabalho
articula-se em duas frentes. A primeira delas consiste na investigação acerca dos
imbricamentos entre estética e política e literatura e testemunho presentes no
romance de Scorza, observando o tratamento dispensado à representação literária
dos personagens comuneiros e o modo como sua voz é materializada formalmente na
narrativa. Para tanto, são mobilizadas as leituras de Jacques Rancière em A
partilha do sensível e no ensaio “O efeito de realidade e a política
da ficção”, bem como a proposta de alargamento para o conceito de testemunha proposto
por Jeanne Marie Gagnebin em Lembrar, escrever, esquecer. A segunda
frente de trabalho consiste, por sua vez, em observar como esses personagens
são confinados para além da cerca e, posteriormente, como muitos deles são
exterminados, pensando-os como pessoas vistas pelo poder como “matáveis”, partindo,
nesse sentido, do conceito de homo sacer, conforme a perspectiva de
Giorgio Agamben.
V.3 Sebald e o peso
ético-estético da literatura de restituição (15)
Davi
Alexandre Tomm, davitomm@yahoo.com.br
Em sua fala na abertura da Literaturhaus,
em Stuttgart, o autor alemão W. G. Sebald finaliza se perguntando para que
serve a literatura? E responde, citando Hölderlin, que a visão sinóptica que
algumas linhas do poeta davam sobre a morte eram ao mesmo tempo ofuscadas e
iluminadas pela memória dos que sofreram as grandes injustiças: “There are many
forms of writing; only in literature, however, can there be an attempt at
restitution over and above the mere recital of facts,
and over and above scholarship” (ênfases minhas). Essa
tentativa de restituição é o ponto central da obra de Sebald, que trata de
resgatar a memória daqueles que já se foram e que sofreram por causa das
catástrofes e destruições de nossa história. No entanto, essa memória é
resgatada através da mediação de um narrador em primeira pessoa, muito
identificado com o próprio autor, e que, portanto, parece também ser
acompanhado de um peso que o impele a uma outra restituição: a com o seu
passado – tanto à nível de uma identidade, quanto no que toca a uma restituição
de uma literatura passada. Esse projeto de uma literatura de restituição se vê
às voltas, assim, com o um problema ético e estético de escrever sobre aquilo
que outros viveram, ou seja, o narrador (e, em certa medida, o autor a ele
identificado), se torna mediador dessas vozes, que não tiveram a chance de,
elas mesmas, relatarem sobre suas vidas. Esse problema ético-estético é
colocado pelo próprio Sebald como o grande dilema da ficção, pois passa por um
resgate e ao mesmo tempo remodelação de uma estética anterior, devendo se ter
respeito e fidelidade às histórias verídicas por um lado, mas por outro, não se
prendendo a um mero realismo, devendo haver pequenas decolagens para a esfera
do imaginário, fantasioso. Também o narrador ao falar de sua escrita, se coloca
diante dessa mesma dificuldade, tratando da escrita como um negócio
questionável, cujo peso da responsabilidade ética a torna quase uma atividade
patológica com o qual o autor nunca sabe ao certo porque não consegue dela se
livrar. Sendo assim, o presente trabalho trará à tona essas reflexões sobre o
trabalho do narrador-autor diante do peso da responsabilidade imposta por uma
literatura da restituição, que para dar essa voz aos mortos, precisa repensar
questões éticas-estéticas fundamentais para a literatura.
VI. 11 de outubro, das
16h às 17h30min
— LOCAL: SALA 206
VI.1 “Ilha das Flores”:
uma leitura da imagem através de Jacques Rancière (16)
Marinice Argenta, mariniceargenta@gmail.com
Jacques Rancière em seu livro O
Espectador Emancipado (2010), principia o capítulo intitulado “A
imagem intolerável”, com uma pergunta: “Que faz com que uma imagem seja
intolerável?” (ibidem, p.125). Por conseguinte, aponta-nos
questionamentos atrelados a essa discussão, ou seja, quais são os traços
característicos que fazem com que olhemos para determinadas imagens e
experimentemos alguma dor ou mesmo indignação? Por outro lado, o de quem produz
a imagem: torna-se um ato plausível construir estas imagens e ofertá-las a
outras pessoas?. Partindo destes questionamentos, toma-se como exemplo o premiado
curta-metragem brasileiro de Jorge Furtado, intitulado Ilha das Flores (1989),
o qual retrata a vida de pessoas em situação de extrema pobreza que recorrem ao
lixo como fonte de subsistência alimentar. Para esse fim o cineasta nos
apresenta um encadeamento de ações, partindo da produção de tomates até seu
destino final: o depósito de lixo, no qual esses tomates serão despejados e
servirão de alimento para seres humanos. É nesse foco que se concentra o estudo
ora apresentado, isto é, nessa relação entre a “imagem intolerável” (ibidem,
p.125) de Rancière e o filme de Furtado, examinando os expedientes da realidade
apresentados no curta que corroboram para a imagem intolerável, ao mesmo tempo
em que se discorre em uma leitura simbólica dessas imagens, bem como a sua
eficácia para a crítica social.
VI.2 “Vai ter luta?”: Aquarius e
algumas narrativas sobre o cenário político brasileiro no pré golpe de 2016 (17)
Octávio
Augusto Linhares Garcia Reis, octavio_mb_rs@hotmail.com
Durante o processo eleitoral de 2014, a
crise econômica que atualmente assola o Brasil já se anunciava dentro do debate
político, que por sua vez, dava sinais do esgarçamento do pacto conciliatório
idealizado pelo Partido dos Trabalhadores em seus primeiros mandatos no
executivo federal. Tais sinais tensionaram o debate ao redor das eleições
presidenciais, levando parte do eleitorado de Dilma Rousseff a apostar no que
se chamou de uma “guinada à esquerda”. Frustrando tais expectativas, Dilma, ao
iniciar seu segundo mandato, acabou por adotar parte da agenda de seus
opositores derrotados nas urnas, o que, no entanto, não a impediu de ser vítima
de um golpe de estado. O pacto conciliatório chegou ao fim, mas ao contrário do
esperado, sua ruptura deu-se à direita. É em meio ao tumultuado
processo de afastamento de Rousseff que é lançado o longa-metragem Aquarius,
de Kleber Mendonça Filho. A estreia do filme no festival de Cannes, inclusive,
foi marcada, por protestos de sua equipe, que usou a oportunidade para
denunciar o golpe de estado em curso no Brasil.
A protagonista de Aquarius,
Clara, guarda marcantes semelhanças com Dilma. Mulher forte, que superou um
câncer, a personagem interpretada por Sônia Braga apresenta uma obstinação
beirante à teimosia. Seu desejo de manter-se proprietária de um apartamento no
Edifício Aquarius bate de frente com os interesses de uma empreiteira local,
personificados na figura de Diego, neto do dono da construtora e responsável
pelo projeto de um novo edifício. Sofrendo pressões articuladas pelo jovem
engenheiro, Clara mantém firme sua posição contrária ao projeto da empresa, e
consegue, ao final, que seus interesses prevaleçam. Aquarius, em
sua estrutura, parece mimetizar posições e crenças presentes no cenário
político brasileiro. Clara, ainda que pertencente à elite, representa um setor
progressista da classe dominante brasileira. Diego e seu avô, por outro lado,
são seus adversários, representando as elites tradicionais, patrimonialistas e
reacionárias. Não obstante o jogo sujo dos representantes do capital, Clara
consegue que seus interesses prevaleçam graças à boa vontade e senso de justiça
de dois trabalhadores que a procuram para denunciar uma das estratégias ilegais
da construtora.
No processo histórico brasileiro, no
entanto, a aliança de classes figurada no entrecho de Aquarius não
acontece. Dilma é derrubada diante de uma classe popular que não se mostrou
disposta a defender um governo que não mais parecia representar seus
interesses.
VI.3 Desterro e passagem do
tempo em A cidade onde envelheço (2016), de
Marília Rocha (18)
Amanda
Lauschner, lauschner.amanda@gmail.com
Francisca é uma portuguesa que mora em
Belo Horizonte há um ano. Quando sua amiga Teresa chega, há conflito de
perspectivas e pouco espaço. Para além das incertezas cavalares e dos
enquadramentos claustrofóbicos, o longa-metragem é colorido por um senso de
humor pueril. Elas oscilam entre sentir falta de Lisboa e rejeitá-la. O
desenraizamento revela um silêncio trágico, que lembra o desterro. Não um
desterro judicial, mas aquele promovido por um sutil porém constante
impelimento político e econômico de forças externas.
De modo geograficamente reverso, podemos
comparar A cidade onde envelheço (2016) com o longa-metragem Terra
Estrangeira (1995), de Walter Salles, o qual narra a tentativa de Paco
e de Alex de se estabelecerem em Portugal no período da era Collor. Em comum
entre os filmes, há uma constante ânsia por liberdade acompanhada de cansaço e
de saudade. Contudo, com menos peripécias no roteiro, A cidade onde
envelheço é um filme cujo sentido se espalha como mancha, não como
linha, em um tempo irremediavelmente líquido.
O
desterro é uma chave de sentido que perpassa muitas obras do cinema
contemporâneo. A história de refugiados em Deephan (2015), de
Jacques Audiard, é um exemplo radical disso. No Brasil, em escalas de desterro
incomparavelmente menores, filmes como O som ao redor(2013) e Aquarius (2016)
revelam um mesmo mal-estar perante a reconfiguração do espaço urbano e o por
vezes compulsório desenraizamento que dela oriunda. Gentrificação e ondas
migratórias aparecem como nuances mais ou menos concentradas de uma mesma
tendência. Em Eu, Daniel Blake (2016), vemos que o massacre da
bolha imobiliária é um fenômeno global que não acabou na crise de 2008, e que
certamente não se limita a Belo Horizonte.
No filme, tanto o espaço quanto o tempo
se mostram finitos. Se hoje é proibido morrer, envelhecer é um convite ao
crime. É permitido falar em ‘amadurecimento’, não em ‘envelhecimento’. É
permitido chamar velhos de ‘idosos’ e dizer que a velhice é a ‘melhor idade’.
‘Envelhecer’ é um verbo tabu: disso vem a força do título do filme. O cinema,
com grande poeticidade, reforça que as mulheres não devem passar dos 26 anos.
Em outras palavras, envelhecer em paz é um direito ainda a ser conquistado. O
espaço psíquico do envelhecer é um lugar que todos precisamos — e
merecemos — encontrar.