Ilha 3 — Viagens, naufrágios, migrações e refugiados


ILHA 3
VIAGENS,
NAUFRÁGIOS,
MIGRAÇÕES
E REFUGIADOS
Cinara Ferreira
e Gerson Neumann


As poéticas do movimento voltam-se, hoje, ao exame dos movimentos que constituem os espaços reais e imaginários. Para essas poéticas, os espaços somente surgem por meio de movimentos, que incluem cruzamentos e travessias. Nesse sentido, os temas da viagem, do naufrágio, da migração e dos refugiados fomentam a discussão sobre o dinamismo que envolve a configuração dos espaços na literatura, nas artes e nas sociedades. Viajar pressupõe um deslocamento, uma saída do espaço em que se está para outro, havendo sempre o risco de acidentes, interrupções, naufrágios. Desde a sua origem, o ser humano se desloca pela necessidade de sobrevivência e, a partir de suas viagens, aprende a não naufragar. Pelo mar, constrói-se o itinerário das clássicas narrativas homéricas e também dos feitos heroicos dos viajantes chineses, vikings, entre outros. O período das grandes navegações registra a inserção do homem moderno no mundo, realizada pela saída para o desconhecido mar, pelos países da península ibérica, marcando o que se pode chamar de primeiro movimento de globalização. Ette (2012) afirma que, nesse período, "as dimensões do mundo eram cientificamente conhecidas do homem ocidental, o mundo na sua forma esférica, por sua vez, era potencialmente dominável". Contudo, dessa experiência de movimento, são oriundas as primeiras assimetrias nas estruturas de poder entre o europeu e o não europeu: um é civilizado e o outro é selvagem, um é cristão e o outro é pagão, um é europeu e o outro é o outro. A partir do primeiro movimento de saída da Europa, as viagens passam por diferentes fases: da caravela ao navio a vapor, da viagem calculada a partir da marcação do tempo pelo relógio, das viagens de descobrimento, às viagens de aventuras, de recolhimento científico, de emigração. São muitos os nomes de grandes viajantes (europeus na sua grande maioria) que navegaram os mares do mundo; são muitos os relatos de naufrágios; o “novo mundo” é novo devido às viagens de “descobrimento” e devido aos muitos (e)migrantes que deixaram a Europa para “fazerem a América”. Atualmente, o uso do conceito de “refugiados” está em voga e assistimos a diversos naufrágios, mesmo em meio a tanta tecnologia à disposição. Como? Por quê? Muitos são os pontos que merecem nossa atenção, quando tratamos de questões em torno dos temas da viagem, dos naufrágios, da migração e dos refugiados. Muitas viagens levaram a narrativas hoje canônicas, e muitas dessas narrativas levaram, por sua vez, a viagens. Tem-se aí um círculo que já é uma viagem em si e, nessa viagem, queremos entrar neste simpósio.


HORÁRIOS DAS COMUNICAÇÕES

I. 9 de outubro, das 11h30min às 13h — LOCAL: SALA 120 DO PPG

I. 1 Tawada Yôko Não Existe: a contribuição teórica de Yoko Tawada sobre tradução, autoria e a língua estrangeira, Lúcia Collischonn de Abreu
I. 2 Gilles Lapouge e seu dicionário sobre o Brasil: uma viagem amoureuse, Laura Taddei Brandini
I. 3 As fronteiras extra-insulares na escrita de Yoko Tawada, Cláudia Pavan
I. 4 A tradução como ato de recriação e a poesia de Tawada Yôko, Marianna Ilgenfritz Daudt e Michelle Conterato Buss

IIA. 9 de outubro, das 16h às 17h30min  LOCAL: SALA 120 DO PPG 

IIA.1 A emigração açoriana para o Brasil no século XIX e a exploração humana: uma história pouco contada, Gisélle Razera
IIA.2  "Fare l'America". A emigração italiana nas obras Cuore e Sull'oceano, de Edmondo De Amicis, Heloísa Sousa Pinto Neto
IIA.3  Opisanie Świata, um livro de viagens, Michel Machado Flores
IIA.4 Oxum A casa da água — do mito orixaísta ao romance de Antônio Olinto, José Ricardo da Costa

IIB. 9 de outubro, das 16h às 17h30min — LOCAL: AUDITÓRIO LUFT

IIB.1 Veendam, a viagem da França ao México: histórias do exílio republicano espanhol da geração 1939, Ana Paula Cabrera
IIB.2 O murmúrio do mundo de Almeida Faria - a revisitação de uma Índia nunca conhecida, Gabriela  Silva
IIB.3 Deslocamentos na narrativa brasileira contemporânea: um recorte do romance Algum lugar, de Paloma Vidal", Rafael Ferreira
IIB.4 Dora Maar e o espaço picasseano: algumas notas sobre La mujer que llora, de Zoé Valdés, Amanda da Silva Oliveira
IIB.5 A viagem de Shadow: deuses americanos e a (des)arqueologia do sujeito, Ilse Maria da Rosa Vivian e Guilherme Buzatto

III. 10 de outubro, das 10h às 11h30min — LOCAL: SALA 120 DO PPG

III.1 Mulheres migrantes nas obras de Najat El Hachmi e Chimamanda Ngozi Adichie, Luciane da Silva Alves
III.2 Das perdas, partidas e refúgios (im)possíveis: algumas notas sobre o exílio no romance Mar Azul, de Paloma Vidal, Cristiane da Silva Alves
III.3 Os percalços da movência: a família errante de A vendedora de fósforos, de Adriana Lunardi, Jéssica Fraga da Costa
III.4 Silêncios em movimento: pequena leitura de Um, dois e já, de Inés Bortagaray, Camila Rodrigues Boff
III.5 “Em algum lugar, um riacho rumorejava” — Vidas em tempos líquidos: uma análise dos personagens de Fama, de Daniel Kehlmann e Mãos de Cavalo, de Daniel Galera, Carla Klos Schöninger

IVA. 10 de outubro, das 16h às 17h30min — LOCAL: SALA 120 DO PPG

IVA.1 Duas jornadas e dois destinos: a trajetória dos personagens náufragos nas novelas Amy Foster e Ladies in Lavender, Fernanda de Mello Veeck
IVA.2 A viagem como trajetória frustrada para a redenção, Rosita Maria Schmitz
IVA.3 A representação dos refugiados em duas obras contemporâneas de língua alemã, Monique Cunha de Araújo
IVA.4 Paródia e contra-epopeia em As naus, de António Lobo Antunes, Camila Stefanello

IVB. 10 de outubro, das 16h às 17h30min — LOCAL: AUDITÓRIO LUFT

IVB.1 Os espaços movediços na narrativa de Carolina Maria de Jesus, Janaína da Silva Sá
IVB.2 Poéticas e deslocamentos: a viagem na arte de Paulo Nazareth, Mari Lúcie da Silva Loreto
IVB.3 As palavras em estado de rebeldia, Lucas Antônio de Carvalho Cyrino
IVB.4 Naufrágio e refluxo do nazismo em Passo de caranguejo, Gabriel Felipe Pautz Munsberg
IVB.5 (Des)territorialização e narrativa autobiográfica: deslocamentos e ressignificação do passado na obra Transplante de menina, de Tatiana Belinky, Simone Luciano Vargas

V. 11 de outubro, das 11h30min às 13h — LOCAL: SALA 120 DO PPG

V.1 Identidade porvir: a viagem como construção do eu e do nós, em Maleita, de Lúcio Cardoso,  Luís Alberto dos Santos Paz Filho
V.2 Estética da viagem, poética do perder-se: apontamentos sobre Lorde, de João Gilberto Noll, Tamara dos Santos
V.3 Viagens rosianas: uma reflexão dialética sobre Grande Sertão: Veredas, Suellen Cordovil da Silva
V.4 Escravidão, migração e trauma cultural em Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves, Vanessa Hack Gatteli

VIA. 11 de outubro, das 16h às 17h30min — LOCAL: SALA 120 DO PPG

VIA.1 Apenas um rapaz latino-americano: a experiência do migrante nordestino na canção de Belchior, Nathalia Pinto
VIA.2 Sinais fechados: a comunidade inconfessável (De Belchior a Foucault), Daniel de Oliveira Gomes
VIA.3 Viagem e memória em Hiroshima, meu amor: confluências entre cinema, literatura e música, Cinara Ferreira e Carlos Walter Soares
VIA.4 O espaço e o movimento do Rio em Danúbio (2008), de Claudio Magris, Fidelainy Sousa

VIB. 11 de outubro, das 16h às 17h30min — LOCAL: SALA 105

VIB.1 Da dor de perder o que não se tem, Daniel Conte
VIB.2 Outreidade, Latinidades: a escrita viajante de Erico Verissimo, Nícollas Cayann
VIB.3 O texto literário como guia de viagem do turista contemporâneo, Jamile Cezar de Moraes  
VIA.4 Não é possível retornar ao paraíso quando se faz a travessia para o mundano,  Raquel Belisario da Silva


RESUMOS DAS COMUNICAÇÕES

I. 9 de outubro, das 11h30min às 13h — LOCAL: SALA 120 DO PPG

I.1 Tawada Yôko Não Existe: a contribuição teórica de Yoko Tawada sobre tradução, autoria e a língua estrangeira
Lúcia Collischonn de Abreu, luciacollischonn@gmail.com

Yoko Tawada, japonesa que escreve em língua alemã, contribuiu com uma vasta obra em suas duas línguas principais de trabalho, o alemão e o japonês. Sua escrita literária vem recebendo especial atenção na crítica em língua alemã e inglesa, especialmente, e a autora é hoje uma importante expoente das literaturas sem morada fixa, termo cunhado por Ottmar Ette (2005). Além da aclamada contribuição no âmbito da ficção, a autora se insere no contexto acadêmico e contribui também na crítica e teoria literária, tanto sobre a escrita e a tradução de forma geral, mas também sobre sua própria obra ficcional. A partir disso, proponho considerarmos o viés teórico de Tawada utilizando primariamente o texto “Tawada Yoko Não Existe”, palestra proferida em japonês pela autora, e traduzida ao inglês por “Doug Slaymaker” (2007), em que a autora aborda o conceito de autoria, contrastando a imagem do autor na tradição ocidental com o autor no contexto japonês. Com o intuito de dialogar com o texto, trago também outras contribuições da autora que corroboram sua visão de autoria, tradução e escrita em língua estrangeira, a saber: Von der Muttersprache zur Sprachmutter [Da língua materna à mãe da língua] (1996), em que apresenta sua visão sobre a língua estrangeira, Erzähler ohne Seelen [Narradores sem alma] (1996), em que reflete sobre o narrador e os diferentes textos que operam em uma tradução e, por fim, Das Tor des Übersetzers oder Celan liest Japanisch [O portal da tradução ou Celan lê japonês] (1996), texto em que propõe uma forma não-linear de visualizar a relação entre tradução e original através de traduções dos poemas de Paul Celan para o japonês. Assim, busco estruturar a contribuição da autora para os conceitos de autoria, escrita em língua estrangeira e tradução, apresentando a autora Yoko Tawada como teórica da literatura, para que sua contribuição possa ser expandida para além dos muros das línguas em que opera, sendo utilizada em outros contextos.

I.2  Gilles Lapouge e seu dicionário sobre o Brasil: uma viagem amoureuse
Laura Taddei Brandini, laurabrandini2016@gmail.com

Fundamentais para os diálogos entre as culturas são os mediadores: escritores, tradutores, jornalistas, críticos, editores, livreiros que não só transitam entre culturas, como propiciam os contatos entre elas. Em sentido próprio ou figurado, são todos viajantes que cruzam espaços e estabelecem relações entre autores, espaços, leitores, temporalidades e temas. Tendo como horizonte as relações literárias entre o Brasil e a França, destacaremos em nossa comunicação o escritor francês Gilles Lapouge, correspondente do jornal O Estado de S. Paulo desde 1950, que viveu no Brasil durante alguns anos e que continua a frequentá-lo, exercendo o papel de mediador-viajante entre as literaturas francesa e brasileira: Lapouge tanto divulgou (e continua divulgando) autores franceses no jornal brasileiro, quanto retratou o Brasil em alguns de seus romances e contos. Célebre autor de obras que tematizam as viagens, Lapouge situa seu Dicionário dos Apaixonados pelo Brasil(2011) em algum lugar entre a ficção e a obra de referência, pois, por um lado, enquanto “dicionário”, deve buscar descrever seu objeto de forma precisa; por outro, essa meta é modalizada pela proposta da obra, um “dicionário dos apaixonados”, que coloca o texto sob o império da sensibilidade e da afetividade do autor em relação a seu objeto. Nesse sentido, a proposta da coleção da editora francesa PLON, que criou os “dicionários” de diversos assuntos, oferece a Lapouge terreno fértil à seleção dos temas brasileiros que mais lhe tocam, permitindo-lhe a efabulação de relatos de viagem de fatura literária, recobertos pela ambiguidade do formato de verbetes de dicionário. Na presente comunicação, à luz de reflexões teóricas acerca do olhar europeu sobre o estrangeiro desenvolvidas por Jean-Marc Moura (1998, 2003), bem como de estudos sobre a literatura e os espaços, notadamente a geocrítica de Bertrand Westphal (2000), analisaremos alguns verbetes do Dicionário dos Apaixonados pelo Brasil a fim de focalizarmos o olhar do escritor-viajante Lapouge sobre as terras brasileiras, interpretando-o criticamente. Mais precisamente, indagaremos os espaços brasileiros presentes na obra, tendo em vista a seleção do autor para compor seu “dicionário”. O que tal seleção anuncia de antemão? Uma visão estereotipada, curiosa ou que demonstra um grau avançado de conhecimento por parte do escritor? Em que medida a obra pode ser lida como um “dicionário” e em que medida o “amoroso” intervém na construção das imagens? Seria possível pensarmos num “dicionário de viagem”? Enfim, qual imagem dos espaços brasileiros predomina no mosaico de pequenas imagens-verbetes afetuosas do mediador-viajante Lapouge?

I.3 As fronteiras extra-insulares na escrita de Yoko Tawada
Cláudia Pavan, cp4v4n@gmail.com

Yoko Tawada se apropria do alemão como uma criança se apropria do brinquedo de um amigo: de assalto, cheia de curiosidade, acompanhada por um olhar estranho, um pouco esquisito, um pouco inusitado. Imbuída desses sentimentos e sensações, ela experimenta, e experimentando, concede mais liberdade e vivacidade à língua do outro e, quem sabe, também à sua própria língua. A escrita de Yoko Tawada se move entre o japonês e o alemão: suas primeiras obras foram escritas em japonês e mais tarde traduzidas para o alemão por Peter Pörtner; outras obras foram escritas inicialmente em alemão e reescritas em japonês pela própria Yoko Tawada; outras, ela escreveu primeiramente em japonês e posteriormente em alemão; e há ainda obras que foram escritas simultaneamente em alemão e japonês. Esse movimento, contudo, vai além das fronteiras entre o alemão e o japonês, pois se manifesta também nas traduções de suas obras. Na escrita de Yoko Tawada, escrever, reescrever e traduzir por vezes se complementam e por vezes se individualizam totalmente numa dança entre fronteiras que podem ser flexíveis, ou nebulosas, ou até inexistentes. Yoko Tawada é japonesa e como japonesa desconhece fronteiras estáticas: "nasci e cresci num país no qual os trens não podem cruzar fronteiras. Numa ilha, acredita-se, equivocadamente, que o fim do próprio mundo é determinado pela água salgada" (TAWADA, 2010, p. 408 tradução nossa). O mover-se entre fronteiras na obra de Yoko Tawada se dá tanto física quanto linguisticamente. O deslocamento espacial e linguístico são temas constantes em seus textos e são também processos que marcam e movem sua escrita. Para ela, a língua representa um território a ser explorado e a fronteira, o início dessa aventura. Assim, pretendemos, neste trabalho, discutir a influência das fronteiras na escrita em constante deslocamento de Yoko Tawada e como esse jogo entre fronteiras e movimento influencia também a tradução de suas obras.

I.4 A tradução como ato de recriação e a poesia de Tawada Yôko
Marianna Ilgenfritz Daudt, maridaudt@gmail.com e Michelle Conterato Buss, michelle.buss@gmail.com

O presente trabalho se insere em um projeto de pesquisa de maior abrangência, ainda em andamento, sobre a obra de Tawada Yôko, sob a orientação dos professores Andrei Cunha e Gerson Neumann. Propomos uma tradução para o seu poema Sekkijidai no Orinppiku(Olimpíadas da Idade da Pedra), publicado em 1991, apenas na Alemanha, como parte do livro Wo Europa anfängt, uma edição bilíngue que apresenta poemas da autora em japonês ao lado da tradução para o alemão, realizada por Peter Pörtner. Em seguida, analisamos os temas, imagens poéticas e ressonâncias intertextuais entre a cultura e história da Alemanha e do Japão evocados nesse texto. TawadaYôko, uma das representantes dos novos caminhos da chamada literatura transnacional, possui uma escrita distinta e complexa, o que contribui para que sua obra represente um considerável desafio tradutório. A escritora, nascida e criada no Japão, vive há mais de trinta anos na Alemanha e escreve e publica tanto em japonês quanto em alemão. Os versos de Tawada apresentam constante diálogo entre as duas línguas e exploram as diferenças culturais entre o Japão e o mundo ocidental europeu. Desejamos também traçar reflexões acerca da atividade de tradução de poesia, especialmente de uma poesia marcada por jogar com idiossincrasias linguísticas e culturais pertencentes a contextos diversos do de língua portuguesa e que passa por diferentes tradutores e idiomas (japonês, alemão, português brasileiro). A metodologia utilizada inclui pesquisa bibliográfica, cotejo das traduções do alemão e do português brasileiro e análise temática e descrição de algumas associações lexicais do poema. Esse trabalho é pautado nos estudos desenvolvidos por Kristeva (1969) com relação ao conceito de intertextualidade e por Bakhtin (1929) quanto ao conceito de polifonia, interseccionado com o próprio conceito de exofonia conforme utilizado por Tawada (2003). Utilizam-se também os conceitos de teoria de tradução de Tawada, que entende a atividade da tradução como um ato recriação, uma forma de trazer nova vida à língua e de colocar as convenções culturais em questão. Como resultados preliminares, percebemos que o poema Sekkijidai no Orinppiku (Olimpíadas da Idade da Pedra) tem ressonância com a cultura contemporânea mundial e com a própria literatura brasileira contemporânea.

IIA. 9 de outubro, das 16h às 17h30min — LOCAL: SALA 120 DO PPG

IIA.1 A emigração açoriana para o Brasil no século XIX e a exploração humana: uma história pouco contada
Gisélle Razera, gisellerazera@hotmail.com

O Brasil do século XIX teve no escravismo o sórdido combustível dos motores que movimentavam a máquina agrícola e, consequentemente, a sua economia. Nesse contexto, além da evidente exploração africana, o lugar foi palco de outra modalidade de exploração humana, desta vez envolvendo a migração de portugueses açorianos para este país. O assunto foi amplamente representado na ficção e na política portuguesa oitocentista e pouco abordado no contexto brasileiro. A proibição do tráfico africanos para terras brasileiras demandou a criação de uma alternativa para a substituição da força negra nas lavouras, o que consistia em atrair gente do paupérrimo Portugal insular para terras sul-americanas. De pouca instrução, prioritariamente analfabetos, muitos ilhéus eram trazidos ao Brasil, voluntária e involuntariamente, em porões de navios sob condições tão degradantes quanto as que seriam encontradas/enfrentadas neste país-destino. Iludidos por contratos de trabalho dos quais dificilmente se livrariam, os então denominados engajados eram negociados nos portos de chegada tais quais cargas de mercadoria viva e raramente retornavam ao seu solo natal; quando o faziam, desembarcavam em Portugal tão ou mais pobres do que quando deixaram aquele país. Esse processo de aliciamento, cunhado na história portuguesa como “escravatura branca”, foi retratado em diversos textos literários produzidos em território lusitano, dos quais destacam-se as peças Aleijões sociais (1850), de Francisco Gomes de Amorim e Paulo e Maria (ou A escravatura branca) (1858), assinada por F. J. da Costa Braga. Os dois textos ficcionais foram levados a público com o propósito de servirem de alerta aos portugueses sobre a discrepância entre o sonho do eldorado prometido pelos engajadores aos candidatos a colonos e a armadilha que significava aceitar se submeter aos contratos abusivos que os conduziriam ao Brasil. Em meio aos seus enredos, esses textos ilustraram aspectos do dia a dia de uma gente expatriada pela pobreza e explorada pela ganância de latifundiários brasileiros e intermediadores dessa modalidade de migração, assunto que suscita um debate oportuno e necessário até os dias atuais.

IIA.2 "Fare l'America". A emigração italiana nas obras Cuore e Sull'oceano, de Edmondo De Amicis
Heloísa Sousa Pinto Neto, heloisaspnetto@hotmail.com

O escritor italiano Edmondo De Amicis (1846-1908), autor de Cuore (Coração), livro escrito em 1886 e que obteve repercussão imediata na Europa e em diversos países americanos, escreveu uma série de outras obras que tem viagem como tema central. Além de escritor amplamente reconhecido em seu país, De Amicis exerceu com sucesso a atividade de jornalista. Como tal, viajou a diferentes países e continentes, sempre registrando suas experiências por escrito, em obras tais como Olanda, Spagna, Marocco e Costantinopla. No início de 2017, uma de suas obras mais significativas neste âmbito, Sull'oceano, publicada na Itália em 1889, ganhou tradução brasileira. A publicação, aqui intitulada Em alto mar, é resultado de coedição da Editora Nova Alexandria e do Instituto Italiano di Cultura de São Paulo e conta com a tradução de Adiana Marcolini. A obra não fala só de uma viagem, traz a pungente história de emigrantes da então recém-unificada Itália em busca de melhores condições de vida no lado de cá do Atlântico. A bordo do navio Galileo, mil e setecentos passageiros partem com destino às cidades de Buenos Aires e Montevidéu. Durante vinte e dois dias de navegação, Edmondo De Amicis é participante ativo de um importante capítulo da história moderna: o fenômeno da emigração entre Europa e América. Em alto mar é um romance com traços de diário de viagem, já que é o registro da própria experiência do autor, ele mesmo um dos passageiros do Nord America, nome real do navio Galileo. Sull'oceano foi a primeira obra italiana a falar sobre o movimento migratório Itália-América, mais objetivamente, Itália-Argentina. Antes desta publicação, entretanto, De Amicis já havia inserido em Cuore um pequeno conto sobre o tema. Este trabalho pretende traçar um panorama das obras de Edmondo De Amicis que apresentam a viagem como tema, tendo como foco principal os livros Cuore e Sull'oceano.

IIA.3 Opisanie Świata, um livro de viagens
Michel Machado Flores, michel.flores@acad.pucrs.br

Opisanie świata (2013), de Veronica Stigger, é uma ficção que pode ser lida como um trânsito por diversas formas narrativas e por questões da literatura e de outras artes. Nela, a viagem parece ser um eixo que é atravessado por uma multiplicidade de histórias, de formas e de temáticas historicamente vinculadas ao fazer literário e artístico. Além da viagem que se confunde com uma narrativa que inicia na Europa e termina na Amazônia brasileira, às vésperas da Segunda Guerra Mundial, essa história explora outras formas de sentido da viagem na literatura, sendo uma delas a da experiência da leitura. Contada por um narrador marcado pela experiência do ver, essa narrativa faz com que seu leitor também viaje, fazendo-o transitar por várias formas narrativas durante sua leitura. Nesta comunicação, se buscará apresentar alguns dos desdobramentos da viagem nessa narrativa, uma vez que, em Opisanie świata (2013), é a viagem que torna possível encontrarmos um ponto de partida e de chegada, de termos um início e um fim, para uma história que não tem apenas um começo, tampouco um final. Com base nos estudos da poética da viagem, de Maria Alzira Seixo (1998), serão apresentados alguns pontos de confluência da viagem com a literatura, como a viagem explorada como forma de organização efabulativa, a viagem imaginada e a viagem relatada. Mas, também, para além dessas formas de relação, serão apresentados dois personagens dessa história que vivenciam viagens iniciáticas, revelações de mistérios, que provocam transformações na forma como eles agem no mundo em que habitam. O personagem Bopp, por exemplo, não é mais o mesmo depois da viagem que faz à Amazônia; já Opalka, depois de descobrir que tem um filho, parte em viagem para conhecê-lo. Para refletir sobre isso, se recorrerá aos textos de Marie Balmary (2011), sobre a viagem iniciática, e de Giorgio Agamben (2011), sobre o que pode ser um mistério e sua relação com a vida e o romance.

IIA.4 Oxum A casa da água — do mito orixaísta ao romance de Antônio Olinto
José Ricardo da Costa,  jricardocostabg@gmail.com

Em A casa da Água (2007), primeiro romance da trilogia Alma da África (2007), Antônio Olinto representa uma família de descendentes de escravizados que retorna para o continente africano, após a abolição, em busca de suas raízes e de um lugar de pertencimento. Em uma associação sincrética entre a religião católica, o Candomblé brasileiro e a religião tradicional iorubá, os deuses se fazem presentes no retorno dos ex-escravos ao solo africano. Tem-se no romance, publicado originalmente em 1969, uma versão feminina do “bildungsroman” goethiano, que associa o processo de individuação da protagonista, Mariana, ao de resgate dos laços rompidos pela diáspora. Acredita-se que a trilogia Alma da África propõe a representação de um matriarcado que reorganiza a sociedade na diáspora africana. Neste trabalho, buscar-se-á uma compreensão da personagem central da obra, a partir de sua aproximação com o arquétipo de Oxum, mito africano e afro-brasileiro diretamente ligado ao que E.M. Meletínski (2015) localiza enquanto “herói-cultural”, reorganizador e transformador da sociedade. Mariana, a mulher que não chora, perdeu sua terra para se encontrar, e, a partir deste resgate, cultivar a África com sangue e voz. Assim, propõe-se uma análise do romance a partir dos arquétipos literários que subjazem à narrativa, em diálogo com o que propõe Northrop Frye (1977). Se, no mito, o fato cotidiano é ritualizado pela presença da divindade, alçado ao fantástico, no romance, George Lukács fala de um acontecimento isoladamente burilado pela lírica do autor, capaz de configurar cada fragmento do ato diário ao nível do universal, a partir do que chama de “sacramento da forma” (2007, p. 49). Tem-se, assim, um romance que se expressa como epopeia de uma era “para qual a totalidade extensiva da vida não é mais dada de modo evidente” (2007, p. 49), para a qual a imanência do sentido tornou-se problemática, mas que ainda assim tem por intenção a totalidade.

IIB. 9 de outubro, das 16h às 17h30min – Sessão II — LOCAL: AUDITÓRIO LUFT

IIB.1 Veendam, a viagem da França ao México: histórias do exílio republicano espanhol da geração 1939
Ana Paula Cabrera, paulacabreraes@gmail.com

Este trabalho objetiva elucidar alguns aspectos que marcaram a viagem de um grupo de exilados espanhóis da geração de 1939, a bordo do transatlântico holandês Veendam. O conhecido desenlace da Guerra Civil Espanhola afetou uma enorme parte dos intelectuais espanhóis, bem como o crescimento cultural que surgia na Espanha nesta década. Em meados de março, a Junta de Cultura Española já desligada da embaixada espanhola em Paris, com o apoio da Legación de México, também em Paris, organiza a saída de um reduzido grupo de artistas e intelectuais da França para o México. Em conjunto com as organizações que formavam parte da Frente Popular, a diplomacia mexicana organizou um sistema de controle que identificava os militantes mais representativos, preparando assim, sua saída da França. Outras nações estavam dispostas a acolher este grupo de intelectuais prestigiados dentro e fora da Espanha em diferentes campos científicos e culturais. A determinação e os esforços do presidente Lázaro Cárdenas em acolher esses refugiados republicanos chegados da Espanha foi implacável, disponibilizando, entre outras coisas, aos exilados, uma viagem para o México a bordo do transatlântico holandês Veendam. Pesquisas de estudiosos como Antonio Plaza (2011), apontam que um dos fatores mais importantes para o sucesso desta viagem foi a disponibilidade financeira do governo mexicano- que através de sua representação em Paris- assumiu todo custo da operação de traslado. O pintor Fernando Gamboa e o embaixador do México em Paris, Narciso Bassols, foram fundamentais na organização dessa expedição, que conduziu um seleto grupo de intelectuais, escritores e pintores de grande prestígio rumo ao México. O historiador Antonio Plaza (2011) cita uma longa lista de espanhóis refugiados no México que saíram da França no Veendam com destino a Nova York (maio de 1939), entre eles, José Bergamín Gutiérrez, Ramón Puyol Carnés, Luisa Carnés Caballero. A acolhida do governo mexicano aos republicanos espanhóis serviu de contrapeso para opinião pública. Porém, a generosa guarida do México a estes intelectuais, despertou a revolta dos setores conservadores, da imprensa mexicana e dos antigos emigrantes espanhóis do final do século XIX - los gachupines, alinhados politicamente com o governo franquista espanhol. Tais medidas repercutiram como um reforço as posições governamentais do governo nacionalista de Cárdenas. As histórias vividas no Veendam representam um fragmento do esforço coletivo que salvaguardou uma parcela da elite cultural espanhola. 


IIB.2 O murmúrio do mundo de Almeida Faria - a revisitação de uma Índia nunca conhecida
Gabriela Silva, srtagabi@gmail.com

Eduardo Lourenço sobre O murmúrio do mundo de Almeida Faria comenta que é uma viagem-diário com dois textos: o que retrata a Índia de hoje, mostrando o que nela é tão fascinante e um segundo momento em que existe um antigo encontro com o Outro, no momento de sua invenção pelos portugueses. Recorrente tema da literatura portuguesa, as navegações desde Camões, habitam o imaginário luso. Da mesma forma que Fernando Pessoa ou o moderno Gonçalo M. Tavares, Almeida Faria toma como motivo a Índia e constrói uma viagem que é peregrinação, momento em que procura conhecer o outro diferente dele mesmo - o europeu. Ao viajar por Goa e Cochim o autor evoca a história da própria geografia local e a relação com Portugal e a dominação religiosa. Publicado em 2012, o texto de Almeida Faria conjuga os relatos de cronistas portugueses da época das navegações e textos de filósofos e escritores de diferentes momentos da contemporaneidade, como também alguns heterônimos pessoanos. Viagem composta de outras viagens, O murmúrio do mundo é um resgate da memória colonizadora portuguesa agora desvencilhada do peso da história e disposta a ver e ouvir o mundo, que outrora constituía um desejo de dominação incansável. Toda a riqueza de uma Índia idealizada, sonhada em sua riqueza cultural e mítica agora percebida pelos sentidos de um viajante livre, mas consciente de seu lugar histórico, ainda de acordo com Eduardo Lourenço, Almeida Faria visita essa mesmo espaço, consciente de que já o conhece, sem lá ter ido, na legitimação da herança imperial da viagem de Vasco da Gama. A carta do mundo, de que nos fala o mesmo Eduardo Lourenço em A nau de Ícaro, pensada pelos portugueses como mapeadora do português como língua, cultura e ficção, agora é construída de uma outra maneira: pela temporalidade que trouxe ao homem português contemporâneo a capacidade de visualizar a Índia fora dos seus domínios ancestrais. Este trabalho propõe uma leitura da obra de Almeida Faria, refletindo sobre a idealização histórica da Índia colonial portuguesa e a Índia visitada e descrita por um português contemporâneo.

IIB.3 Deslocamentos na narrativa brasileira contemporânea: um recorte do romance Algum lugar, de Paloma Vidal"
Rafael Ferreira, raffael_05@yahoo.com.br

Definir o modo de vida na contemporaneidade é um problema sobre o qual estudiosos têm se debruçado há décadas. A resposta a esse questionamento é complexa e remonta a transformações ocorridas no âmago da sociedade, sobretudo a partir das experiências turbulentas vividas no século XX. No entanto, é possível afirmar que uma das marcas da contemporaneidade reside nos deslocamentos populacionais e nas políticas migratórias que caracterizaram o momento histórico recente. Dessa maneira, as narrativas literárias, enquanto manifestações de pensamento de vanguarda, capazes de apreender as mutações pelas quais a sociedade se molda ao longo do tempo, refletem os efeitos dessa nova demanda. Tais obras colocam no centro do debate questões que dizem respeito a noções como identidade, alteridade, migração, exílio, diáspora, dentre outros aspectos. Na Literatura Brasileira, em particular, dentre os inúmeros assuntos tematizados, figura-se um que está associado aos deslocamentos, compulsórios ou não, de indivíduos ou grupos de indivíduos que migram de suas pátrias em direção a outros países. O presente estudo dedica-se ao romance Algum lugar, de Paloma Vidal, publicado em 2009. A narrativa é fruto da vivência da escritora na cidade de Los Angeles, Estados Unidos, durante o período em que realizou parte da pesquisa de sua tese de doutorado, sendo escrito concomitantemente à elaboração da sua tese. Como reflexo da experiência de Paloma Vidal, o romance narra a história de uma personagem feminina que se muda temporariamente do Rio de Janeiro para Los Angeles, com a finalidade de continuar a pesquisa de sua tese de doutorado. Na cidade americana, ela divide o tempo entre os estudos, as aulas de espanhol que ministra, o convívio com alguns poucos amigos e a vida a dois com o namorado em um pequeno apartamento alugado. No entanto, sob o aspecto pragmático de suas vivências, subjaz a busca por um estado anterior perdido, a tentativa de conciliação do ser com espaços e tempos múltiplos e a compreensão de uma identidade marcada pelo deslocamento. Nessa esteira, os estudos de teóricos como Edward Said (2003), Eric Hobsbawm (2010), Homi Bhabha (2013), Stuart Hall (2002, 2006), Zygmunt Bauman (2001), dentre outros, servem de suporte para a reflexão crítica aqui apresentada.

IIB.4 Dora Maar e o espaço picasseano: algumas notas sobre La mujer que llora, de Zoé Valdés
Amanda da Silva Oliveira, amanda.oliveira.002@acad.pucrs.br

A obra La mujer que llora mescla a figura de Dora Maar, e sua complexa relação amorosa com Pablo Picasso, na Paris boêmia dos anos 30, com uma metanarrativa do processo criativo da autora, Zoé Valdés. A possibilidade de um fim de semana com um possível novo amor em Veneza faz com que Dora Maar estabeleça, sob a voz narrativa de Zoé Valdés, um ponto de inflexão sobre sua vida amorosa, suas memórias ao lado del gran gênio e a decisão de, após a morte del maestro, clausurar-se. Amante, musa e vítima de Pablo Picasso, Dora Maar empreende uma viagem ao lado de Bernard Minoret e James Lord a Veneza, e é essa viagem a última que faz na vida, e “a partir de ahí, del viaje, Dora decidió romper com todo, se encerro en su casa de la rue de Savoie y apenas salía de allí, exclusivamente para assistir a missa” (VALDÉS, 2013). Ao completar 40 anos da morte de Picasso, Zoé Valdés tem o projeto de construção da narrativa da vida da mais famosa das amantes do pintor, que fez tudo por amor, amor este levado ao limite da castidade, após a viuvez. Divididos em quatro partes, o romance vai mesclando as vozes da autora, em encontros com amigos de Dora, pesquisas e passeios por Paris para a construção da história. Nas quatro partes do livro, “Los ardientes pensamientos”, “Todo lo que quise llorar, lo he escrito”, “Extracto de todos esos silêncios” e “La última palabra y el último rezo”, há capítulos em que permeiam os nomes da protagonista Dora, com os viajantes amigos James e Bernard, que estariam falando sobre o fim de semana em Veneza, e a autora, Zoé Valdés, que, junto à viagem narrada por eles, constrói sua Dora Maar e a si própria, como cubana exilada em Paris. A proposta deste trabalho é analisar a obra, construída através das impressões da autora Zoé Valdes, nos espaços narrativos e reais, evidenciando-os como provas da construção do sujeito frente às adversidades de deslocamentos de si, do eu, do outro, nos lugares em que se constituem como seres e agentes sociais, emocionais e narrativos
 
IIB.5 A viagem de Shadow: deuses americanos e a (des)arqueologia do sujeito
Ilse Maria da Rosa Vivian e Guilherme Buzatto, ilsevivian@hotmail.com e guibuzatto@gmail.com

Deuses americanos ou, originalmente, American Gods, é um romance de Neil Gaiman, autor britânico, reconhecido mundialmente pela autoria de HQs e de roteiros para o cinema e para a televisão. Dentre outras produções, Gaiman escreveu o roteiro de dois episódios da série Doctor Who: "The Doctor's Wife" foi transmitido em 2011 durante a sexta temporada da série, e "Nightmare in Silver" foi transmitido em 2013 na sétima temporada. “The Doctor's Wife" rendeu ao autor um prêmio na categoria de Melhor Apresentação Dramática (modalidade Curta). Autor do famoso Sandman, que consiste numa série de HQs que tem como protagonista a personificação do Sonho ou de Morpheus, Gaiman é produtor de obras que transitam pelas vertentes da mitologia antiga e moderna. Trata-se, portanto, de um artista que apresenta o hibridismo como peculiaridade da linguagem. É o caso de Deuses Americanos, cuja saga é vivida pelo misterioso e emblemático protagonista Shadow, um ex-condenado, recém liberto da prisão. Sem noção de sua real identidade, inicia uma série de viagens pelas diversas paisagens americanas, cuja motivação é a busca por aliados para uma guerra que está prestes a acontecer entre deuses antigos e modernos. Ao viver a desventura do mundo moderno, sem muitas opções para viver, Shadow vai se tornando uma figura complexa: em devir, busca compor-se em meio às fatalidades dos embates de forças opostas, as quais representam o antigo e o novo, o espiritual e o mundano, a sacralidade e a tecnologia. Esses elementos são pano de fundo dos eventos que norteiam (ou que desnorteiam) a narrativa. O choque entre opostos atinge o ápice com o nascimento da pós-modernidade. As relações entre o “eu” e o “outro”, a representação e o comportamento das divindades compõem a imagem do “si mesmo” percebida por Shadow. Sob essa perspectiva, American Gods versa sobre o trânsito em que se encontra o sujeito que busca reconhecer, mais do que a si próprio, os sentidos da existência e a natureza da realidade que contempla da margem. Objetiva-se, a partir da análise da narrativa, verificar a imagem do homem que se compõe pelo panorama simbólico dos entre-lugares que temporalizam a personagem, os quais, ao confrontar passado e futuro, possibilitam repensar a (des)arqueologia do sujeito. Como aparato teórico, são chamadas ao texto as teorias de Gaston Bachelard, Paul Ricoeur, Gilbert Durand, Maurice Blanchot, Gilles Deleuze, Edward Said e Beatriz Sarlo.

III. 10 de outubro, das 10h às 11h30min — LOCAL: SALA 120 DO PPG

III.1 Mulheres migrantes nas obras de Najat El Hachmi e Chimamanda Ngozi Adichie
Luciane da Silva Alves, lucianesalves@gmail.com 

Este trabalho procura analisar como é representada e construída a identidade das personagens mulheres migrantes nas obras de Chimamanda Adichie e Najat El Hachmi. Pretendo mostrar neste estudo, que na escrita destas autoras, o deslocamento leva as protagonistas ao encontro de novos espaços de fala e (auto)representação que ocasionam uma ruptura dos papéis de gênero tradicionais, simbolizados pelas figuras maternas.  Em um confronto com as histórias criadas sobre si mesmas pela cultura dominante, as mulheres estrangeiras procuram tecer a narrativa a partir de sua perspectiva, para além da incompletude dos estereótipos e do que Chimamanda Adischie chama de “história única”. O contato com o “outro” é elemento fundamental para a construção da própria identidade visto que esta se dá pela diferença. A mulher estrangeira ou migrante representa duplamente a busca pelo “eu”, considerando que dentro de seu espaço de origem está subjugada à cultura do homem. Na formação identitária do feminino há quase sempre uma margem, uma fronteira a ser cruzada na busca de ser e pertencer a uma cultura que muitas vezes relega um lugar periférico à mulher. Ao analisarmos a migração de mulheres, é necessário considerar este primeiro nível, a primeira força migratória que parte do lugar marcado pelo gênero. Além disso, no caso das narrativas citadas, há a questão do racismo, que coloca as mulheres negras e pardas em nível ainda mais marginalizado que o ocupado por mulheres brancas. Ao procurar afirmar-se e entender sua diferença de modo positivo e libertador, ocorre uma ruptura permanente para estas personagens. Somando-se a isso o fato de analisarmos personagens mulheres, que assim com as autoras, são originadas de países africanos, é possível perceber de forma mais ampla a complexidade dos padrões de pertencimento e representação, passando-se a níveis mais profundos do que é ser “outro”. Por fim, a escolhas de autoras e personagens mulheres e migrantes de origem africana, procura reafirmar a ideia da Literatura Comparada como lugar de revisão dos modelos canônicos tradicionais e ampliação do espaço de representação cultural e de fala nos estudos literários.

III.2 Das perdas, partidas e refúgios (im)possíveis: algumas notas sobre o exílio no romance Mar Azul, de Paloma Vidal
Cristiane da Silva Alves, cristianesalves@gmail.com

Desde os tempos mais remotos, o ser humano se desloca, viaja, transita por diferentes espaços e por motivações diversas. O deslocamento, porém, nem sempre é resultado da vontade pessoal, de um ato voluntário. Por precariedade, medo ou imposição de regimes autoritários, muitos indivíduos são obrigados deixar o seu país e seguir em direção a outras terras. No contexto latino-americano, em razão das ditaduras implantadas, intensificaram-se, nas décadas de 1960 e 1970, as viagens forçadas, as expulsões, fugas, e autoexílios. No Brasil e na Argentina, como em outros países do cone sul, um expressivo número de pessoas teve de abandonar seu país e buscar abrigo em outras partes do mundo, em uma tentativa de escapar da repressão e da violência. Essa partida forçada, não raro indesejada, deixou incontáveis fraturas e marcas que atravessaram os anos e seguem ecoando na memória daqueles que direta ou indiretamente foram afetados. No caso de Paloma Vidal, professora e escritora nascida em Buenos Aires, em 1975, a experiência do deslocamento se deu muito cedo. Com apenas dois anos de idade, juntamente com a família, ela mudou-se para o Brasil. Desde então, já vivenciou outros trânsitos – foi criada no Rio de Janeiro, fez parte de sua pesquisa de doutorado em Los Angeles e atualmente mora em São Paulo – que, de algum modo, irrompem em sua escrita. Em seu romance Mar Azul (Rocco, 2011), com efeito, a autora empresta a voz a uma narradora-protagonista não nomeada que, quando jovem, em razão do regime ditatorial instaurado na Argentina, teve de partir para o Brasil, lugar em que envelheceu e de onde narra. O que se propõe neste estudo é refletir acerca do exílio e dos seus desdobramentos na história da protagonista de Mar Azul, bem como investigar em que medida a memória, o trauma e o silenciamento decorrentes do contexto ditatorial atravessam o discurso literário. Busca-se, igualmente, analisar se e como seu relato se conecta com o processo histórico-social dos países latino-americanos, em especial do Brasil e da Argentina.

III.3 Os percalços da movência: a família errante de A vendedora de fósforos, de Adriana Lunardi
Jéssica Fraga da Costa, jessica.fraga@ufrgs.br

O presente trabalho tem por objetivo realizar uma análise do romance A vendedora de fósforos publicado em 2011, pela escritora catarinense, Adriana Lunardi. Visa-se destacar os processos migratórios pelos quais as personagens passam ao longo da narrativa, procurando entender o que leva a família Dos Anjos a não encontrar um lugar fixo. A história gira em torno de uma família errante, pessoas que migram de um lugar a outro sem se fixar em parte alguma. Um pai, uma mãe, duas filhas e um filho são as personagens que circulam nesse emaranhado permeado pelas memórias de duas meninas que de tão próximas, fundem-se em um mesmo relato, por vezes, difícil de diferenciar de quem é a voz que se enuncia. Durante o desenrolar da trama, há uma confusão entre o eu e o outro, não há como saber qual das duas irmãs é a narradora ou a protagonista da história. Elas se misturam e se confundem, sendo praticamente uma só. Estas pessoas não são nomeadas, cada um é identificado ao longo do romance pelo posto ocupado dentro da família.  Cabe ressaltar que essa movência causava um certo estranhamento aos membros desta família. Sentiam-se estranhos e assim eram vistos pelos que os rodeavam. Porém, não possuíam qualquer possibilidade de estabilidade ou de permanência. Por mais que em determinados locais criassem certos laços afetivos com algumas coisas ou pessoas, estes não eram sólidos o suficiente para serem mantidos, logo partiam rumo a um novo lugar e uma nova morada. Por fim, pretende-se ainda analisar cada uma das personagens da narrativa, buscando observar a forma de abrigo ou de fuga que elas ambicionam, seja pela palavra, ou pelo silêncio.

III.4 Silêncios em movimento: pequena leitura de Um, dois e já, de Inés Bortagaray
Camila Rodrigues Boff, camila.rboff@hotmail.com

Um carro em movimento. Os postes passam, a paisagem é sempre movente. Dentro desse espaço-tempo fluido e quase-silêncio, seis pessoas viajam: um casal e seus quatro filhos, todos indo para o litoral de um país que apenas se insinua nas entrelinhas da narrativa. Há muito apenas sussurrado na pequena novela da escritora uruguaia Inés Bortagaray. Lançado em 2010 (no Brasil apenas em 2014), a história é narrada por uma das filhas do meio, que permeia o presente com suas memórias e com as brincadeiras que fazem na tentativa de que o tempo se dissolva. As crianças sentadas no banco de trás revezam o lugar às janelas a cada 200km, repartindo entre si o local privilegiado, que dá ao olhar infantil a paisagem de um pampa imaginado pelo leitor, povoado por vacas e postes que correm à percepção curiosa e voraz dos pequenos viajantes. Tudo é pequeno e sensível na trama de Bortogaray: diversos pontos da narrativa se colocam em entrelinhas que precisam ser acolhidas em seus detalhes. O detalhe é quase tudo em Um, dois e já, talvez uma marca do olhar da criança que desvela aspectos incomuns da vida, que desacostuma o olhar já automatizado do adulto. Nesse sentido, elementos culturais, como o mate, ou os índices do contexto histórico, como a ditadura e a Guerra das Malvinas, pairam e correm pela novela como acidentes, um resquício que cai e é recolhido pela pequena narradora, oferecidos a quem quiser partilhar do silêncio que habita essa cápsula de aço e movimento, espaço-tempo que se move até chegar a um local que a narrativa nunca alcança. Qual é o sentido dessa viagem? É apenas o trajeto feito até a praia em período de férias? Ou o silêncio e os detalhes querem dizer muito mais dessa movência do que ela quer se mostrar? Desta forma, proponho uma pequena leitura, acompanhando o silêncio em movimento, para entender essa viagem pelas paragens do sul, tendo como objetivo analisar o deslocamento, a memória e o silêncio, percebendo como seu funcionamento constrói e tece a pequena narrativa.

III.5 “Em algum lugar, um riacho rumorejava” — Vidas em tempos líquidos: uma análise dos personagens de Fama, de Daniel Kehlmann e Mãos de Cavalo, de Daniel Galera
Carla Klos Schöninger, carla.luciane@yahoo.com.br

O texto consiste em uma análise dos personagens das obras literárias: Fama, de Daniel Kehlmann (2011) e Mãos de Cavalo, de Daniel Galera (2006). Ambas são obras contemporâneas que abordam o contexto atual, em que as ações dos personagens refletem da condição em que vivem; os quais, na fluidez de suas vidas são levados pelas correntes. Esse cenário é tratado pelo sociólogo Bauman como contexto líquido. Contexto este, em que as ações do indivíduo fluem com dinamicidade, percorrem, escoam, drenam, filtram, respingam. A fluidez exige adaptações e mudanças em um curto espaço temporal. O teórico Giddens oferece diferentes leituras no que se refere ao contexto contemporâneo e às cidades, marcando a ideia de necessidade de adaptação. Portanto, através dos personagens exemplificou-se a necessidade de se assumir diferentes identidades, a efemeridade do sucesso, os benefícios e malefícios das tecnologias e a fragilidade das relações humanas.

IVA. 10 de outubro, das 16h às 17h30min  LOCAL: SALA 120 DO PPG

IVA.1 Duas jornadas e dois destinos: a trajetória dos personagens náufragos nas novelas Amy Foster e Ladies in Lavender
Fernanda de Mello Veeck, fernandamellvee@gmail.com

Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, em seu Dicionário dos Símbolos, afirmam que o mar simboliza o movimento dinâmico da vida, sendo assim, a turbulência das águas representa a transitoriedade entre as possibilidades ainda abstratas e a concretude da realidade, o que se configura em uma dualidade de perspectivas, resultando na configuração do mar como um espaço de vida e de morte. Essa ambivalência de possibilidades é o que encontramos no destino dos personagens náufragos em duas novelas da literatura britânica, Amy Foster (1901), de Joseph Conrad e Ladies in Lavender (1908), de William John Locke. O livro As fadas no divã (2006) de Diana e Mário Corso, apresenta algumas características comuns aos contos de fadas que se relacionam com a definição de Vladimir Propp em sua obra Morfologia do Conto Maravilhoso. De acordo com Propp, os contos de fadas não precisam apresentar fadas tampouco outros seres míticos, e sim, deve conter algum elemento extraordinário.  Ladies in lavender, novela publicada pela primeira vez na antologia Far-Away Stories(1916), de William John Locke, está repleta dos elementos mencionados por Diana e Mário Corso. O extraordinário encontra-se em todos os momentos, do início ao final da narrativa. Em sua obra Estrangeiros para nós mesmos, a filósofa e escritora búlgara Julia Kristeva discorre sobre as razões de um indivíduo não pertencente ao meio em que decide viver causar tanto estranhamento entre os habitantes nativos do local escolhido. Kristeva afirma que o discernimento dos traços do estrangeiro ao mesmo tempo o aproxima e afasta dos outros, porque o estrangeiro não é alguém comum. Kristeva conclui que é a banalidade que constitui a identidade entre um determinado povo. Kristeva revela que o estrangeiro sofre de uma profunda solidão, pois não encontra correspondência quando deseja estabelecer qualquer vínculo de amizade, pois devido ao estranhamento que provoca nos demais, tanto sua identidade quanto a expressão de seu pensamento acabam sendo desconsideradas. O presente estudo tem como objetivo analisar a trajetória desses dois personagens náufragos que apresentam diversos pontos de intersecção, todavia são lançados a destinos absolutamente diferentes em terra firme.

IVA.2 A viagem como trajetória frustrada para a redenção
Rosita Maria Schmitz, rositams@hotmail.com

Para o autor suíço Christian Kracht, as viagens representam um objetivo em si mesmo, um prazeroso construir de seu próprio mundo, servindo, simultaneamente, como suporte para sua produção literária. Como o próprio autor, os heróis dos livros de Kracht, frequentemente, aparecem em viagens, sempre em fuga de alguma coisa, em fuga de si mesmos, em busca de autoconhecimento e de lugares agradáveis mundo afora. São figuras à procura da felicidade, que sempre se mostra efêmera, jogando-os de volta à realidade. Em seus romances, o autor desenha cenários sombrios de totalitarismo e decadência, em um jogo que oscila entre desilusão e recomeços. Se nos romances Faserland, 1979 e Eu estarei aqui no sol e na sombra, os narradores em primeira pessoa se movem em direção a sua derrocada, Imperium narra, não o desaparecimento de um personagem, que se perde nas suas utopias, mas de um império destruído pela guerra. Em Faserland, a viagem do norte da Alemanha até a Suíça é a busca de uma saída para o vazio em que o narrador se encontra. 1979 é um romance que conta o destino de um dândi ocidental, que viaja para Teerã no final do regime do Xá, e entra em choque com uma sociedade que ainda procura disfarçar seu declínio atrás de palácios, do consumo de drogas e de festas, sendo derrotada violentamente. Eu estarei aqui no sol e na sombra é mais um romance de viagem, ambientado na Suíça e na África, que narra a história de um século caracterizado por violência, guerra e destruição. No romance Imperium, o protagonista embarca, no início do século XX, para o Protetorado de Nova Guiné Alemã, para fugir das limitações de sua vida na Alemanha. Entretanto, lá ele adoece e seu corpo se degenera progressivamente, acompanhando a vida morbidamente decadente da capital do Protetorado, na qual o tédio é enfrentado com frivolidades e bebida alcoólica. Portanto, constatamos que a temática da viagem é um elemento central na obra de Christian Kracht, que serve de suporte para suas narrativas, acompanha a trajetória dos heróis, que, em busca de redenção, enfrentam o desconhecido e acabam sucumbindo. Nesse sentido, as viagens transmitem, sob uma superfície festiva, invariavelmente, uma mensagem do fim das utopias.

IVA.3 A representação dos refugiados em duas obras contemporâneas de língua alemã 
Monique Cunha de Araújo, mcunhadearaujo@gmail.com

Este trabalho traz um estudo comparativo entre os personagens refugiados, representados nos livros Gehen, ging, gegangen (2015), de Jenny Erpenbeck, e Ohrfeige (2016), de Abbas Khider. Nesses livros, os refugiados são representados de diferentes formas. No primeiro, eles são vistos como os não-colonizados. Em Ohrfeige, eles sofrem com o desterro e o choque cultural, assim como sugere a tradução do título: tapa na orelha, ou como o nosso tapa na cara. Em Gehen, ging, gegangen, o título indica a forma de estudar os verbos na língua alemã: infinitivo, pretérito e uma espécie de particípio do verbo “ir”, formas que também podem representar o movimento da fuga. Nos anos 2000, fugindo do governo ditatorial de Sadam Hussein, o escritor iraquiano Abbas Khider passou duros momentos na estranha Alemanha: primeiro, a pilha de formulários para o asilo; depois, a língua; mais tarde, insultos e xingamentos pós - 11 de setembro. Depois de haver conseguido o asilo definitivo no país, Khider estudou literatura e filosofia e tornou-se escritor. Escreve em língua alemã. Por muito tempo foi considerado um escritor de apenas uma categoria, a da Migrationsliteratur, mas nos tempos atuais é considerado o porta-voz de uma “nova literatura mundial”. Em Gehen, ging, gegangen, escrito pela alemã nascida na antiga Alemanha oriental Jenny Erpenbeck, as concepções positivas, a chamada Willkommenskultur, a cultura do “seja bem-vindo” traduz um sentimento de pacificidade e acolhimento. O caráter afetuoso e aberto da comunidade alemã com os refugiados africanos, de certo modo, beira ao ridículo. O livro sugere um caminho possível para a crise: a acolhida pacífica e o apoio mútuo. O livro de Khider, entretanto, evidencia o contrário. Os escritos desses autores são marcados pelo sentimento de desterro e procura de um lar (à luz dos conceitos de Heimat e Fremde), assim como também são permeados de vieses autobiográficos.  

IVA.4 Paródia e contra-epopeia em As naus, de António Lobo Antunes
Camila Stefanello, stefanello.camila@gmail.com

Em As naus, publicado em 1988, o escritor português António Lobo Antunes apresenta uma versão literária de tom assumidamente parodístico do retorno a Portugal de importantes figuras históricas do período das grandes navegações e dos “descobrimentos” de novas terras. No romance antuniano, nomes como Luís Vaz de Camões, Pedro Álvares Cabral, Diogo Cão, Vasco da Gama, Francisco Xavier, Fernão Mendes Pinto e Manuel de Sousa Sepúlveda regressam de África, colônia portuguesa, nas caravelas, mas não em seu tempo histórico, século XVI, e sim no século XX no período da Revolução de Abril. Desse modo, na narrativa são apresentadas várias referências a eventos e elementos dos planos temporal e espacial históricos do século XVI que se hibridizam simultaneamente com a temporalização e a espacialização de Portugal do século XX. Além disso, contrapõem-se, nesse romance, a herança de uma História oficial encontrada nos textos historiográficos e alimentada ideologicamente por textos literários, sobretudo no período da ditatura salazarista, à experiência subjetiva vivida ficcionalmente pelas personagens retornadas. As naus assume, então, um discurso intensamente dessacralizador, satírico, parodístico e anti-épico ao revisitar e reelaborar através da ficção acontecimentos e textos, literários e históricos, fundadores da História, do imaginário e da cultura portugueses. O romance de António Lobo Antunes também se aproxima de uma temática pós-colonialista, ao perspectivar por meio da imagem do regresso dessas figuras míticas uma metáfora dos retornados que combateram na guerra colonial em solo africano. Nesse sentido, essa comunicação tem por objetivo analisar o caráter parodístico e anti-épico em As naus, de modo a compreender como o diálogo “às avessas” que o romance antuniano estabelece com acontecimentos, figuras míticas e textos canônicos – os quais, ainda na contemporaneidade, fomentavam o imaginário imperialista português – promove, conforme a série de textos ficcionais publicados posteriormente à Revolução de Abril de 74, outros discursos sobre a História oficial portuguesa, desde os períodos mais remotos até os mais recentes.

IVB. 10 de outubro, das 16h às 17h30min — LOCAL: AUDITÓRIO LUFT

IVB.1 Os espaços movediços na narrativa de Carolina Maria de Jesus
Janaína da Silva Sá, janaina.sa@jc.iffarroupilha.edu.br

A cultura contemporânea recuperou a figura do passageiro, do caminheiro, do passeador, do errante, reinventando a ideia de localização e deslocamento. Para Paul Ricoeur (2007), entre as alternâncias de repouso e movimento, está instituído o ato de habitar, o fato de um corpo estar compreendido entre um aqui e um acolá. Diante dessa compreensão, acredito que a construção do universo narrado da escritora mineira Carolina Maria de Jesus concretiza-se por essa procura incessante pelo ato de habitar, que se manifesta por meio dos constantes agenciamentos que a narradora irá empreender pelos caminhos por onde circula. No discurso de Carolina Maria de Jesus existe uma inquietante busca por esse lugar que a todo o momento lhe escapa, há o sentimento assombroso de um indivíduo que busca agenciamento, porém esse corpo não se congrega, não se incorpora, prevalecendo, ou estando imposto a ele, o reinado do vazio. A figura do flâneur, celebrado como uma representação simbólica da metrópole moderna consagrou-se quando Walter Benjamin, no início do século passado, fez o uso do termo, pretendendo ocupar-se dessa figura como a de um indivíduo que adquire experiência por circular em um determinado território. Entretanto, esse “deslocar-se” configura um andarilho peculiar, pois suas características esbarram no fato de ele encontrar-se entre estranhos “na” multidão. Nas narrativas da escritora mineira se observa que a experimentação da narradora diante dessa nova projeção da cidade (contemporânea) não se equipara à do flâneur baudelairiano, pois se observa a existência de indivíduo estranho “da” multidão, que a todo o momento deseja agenciar-se como um indivíduo possível. Nos espaços por onde circula sua identidade é moldada a partir dos momentos de interface que vai colhendo aqui e acolá. Carolina escapa da compreensão do flâneur, pois não vai ao passeio a fim de obter prazer com as possíveis trocas de experiências. Sua investida pela cidade é composta por um itinerário agressivo, onde quem comanda é a busca pela sobrevivência. Ser errante, nômade, passageiro, caminheiro, transeunte serão possíveis nomenclaturas para designar esse percurso insólito de quem ousa a narrar as adversidades de um mundo contemporâneo hostil.

IVB.2 Poéticas e deslocamentos: a viagem na arte de Paulo Nazareth 
Mari Lúcie da Silva Loreto, mari_lucie@yahoo.com

O estudo busca investigar poéticas e deslocamentos vinculados à vivência do trânsito e mobilidade nas experiências artísticas contemporâneas a partir do estudo da obra de Paulo Nazareth. A individualidade do processo do artista e o uso dos meios criativos perpassam e transbordam os limites da arte evidenciando o entrelaçamento da arte, viagem e vida. As possíveis alterações e ampliações no campo da arte conferem em Paulo Nazareth uma marca na diáspora artística de sua geração por meio das exposições e produções com residências na volta ao mundo, ou em suas próprias potencialidades. O lugar da arte se desloca no campo previamente institucionalizado e incorpora uma dinâmica com facetas as mais sugestivas.  A proposta articula a reflexão dos conceitos que possam dar conta dessa realidade tanto naquilo que lhe é específico quanto nos seus deslocamentos, movimentos e margens. Como um artista viajante, Paulo Nazareth percorre territórios caminhando longos percursos.  Os encontros, acasos e experiências consolidam as performances do artista. A fotografia e o desenho são usados para o registro de suas andanças pelo mundo. Nesse sentido, o trabalho aborda a obra de Paulo Nazareth que privilegia a inserção do cotidiano, do lugar comum, do encontro, dos lugares de passagem, da aventura e da reflexibilidade de tais realidades, assim como as interpenetrações desses espaços estéticos e éticos. Caminhos incertos, multiplicidade de possibilidades é o que o artista encontra na vida errante. Uma vida que proporciona um encantamento pessoal e um reencantamento do mundo. Os deslocamentos de fronteiras, a busca da identidade e transgressão, visíveis na obra de Nazareth, dinamizam o campo da arte, instaurando a relação com a vida.

IVB.3 As palavras em estado de rebeldia
Lucas Antônio de Carvalho Cyrino, laccyrino@gmail.com

Os rumores em torno da possível passagem de Che Guevara pelo Brasil em 1966, pouco antes de seguir para a Bolívia, onde seria morto em outubro de 1967, alimentam teorias conspiratórias, contos e anedotas de toda sorte. Valendo-se de uma delas, o romance mais recente e Miguel Sanches Neto, A Bíblia do Che (Cia. das Letras, 2016), parte da premissa de que o guerrilheiro teria passado por Curitiba e, disfarçado de padre, teria carregado consigo uma bíblia em português, na qual teria feito anotações pessoais no estudo ontológico sobre a figura de Jesus Cristo: Che veria nele um guerrilheiro exemplar, um exemplo a ser seguido. Passados cinquenta anos, a bíblia desperta a curiosidade de indivíduos do primeiro escalão político nacional, colecionadores secretos de relíquias do tempo em que estiveram na guerrilha. A busca pela bíblia passa a envolver o professor Carlos Eduardo Pessoa, narrador-protagonista do romance (e também de outra obra do autor, A primeira mulher, de 2008), com Celina, ex-mulher de um pivô de escândalos de corrupção no país, que juntos reviram Curitiba em busca de sinais do objeto deixado por Che. Se em terras brasileiras a busca adquire tom de peregrinação, é vendo Che Guevara como um “guerrilheiro exemplar” que Celina revela verdadeira obstinação pelo objeto procurado e decide seguir os passos de Che pela Bolívia, rebelando-se inclusive em relação ao envolvimento amoroso que desenvolve, nesse meio tempo, com Carlos Eduardo. No redemoinho de sentimentos e ações que caracteriza a busca alucinante pela bíblia, desponta, em cada personagem, a procura de um refúgio para si: ela, no ideal de liberdade e igualdade que via no ídolo guerrilheiro; ele, na busca da mulher amada, que lhe envolve em uma paixão tragicamente juvenil. Às margens dessa peregrinação – física e psicológica, ora na busca pela Bíblia, ora na busca de si – se posiciona a conjuntura política nacional, tão bem orquestrada por Sanches Neto neste romance que, ao tratar de uma figura mitológica como Che Guevara, vai além da rebeldia quase juvenil em favor da busca pela Bíblia para colocar, na narrativa, as próprias palavras em estado de rebeldia, sensíveis à leitura (e à inferência) na voz e na ação de cada personagem. Este trabalho buscará, portanto, reconhecer, nos trajetos depreendidos por Carlos Eduardo e Celina, os pontos em que suas rebeldias se cruzam, mediadas por Che Guevara, pela América Latina e por um Brasil imerso em corrupção.

IVB.4 Naufrágio e refluxo do nazismo em Passo de caranguejo 
Gabriel Felipe Pautz Munsberg,  gabriel_munsberg@yahoo.de

Nesta comunicação, pretende-se analisar a recuperação e análise de memórias, considerando a escrita de acontecimentos traumáticos a partir da novela Passo de caranguejo [Im Krebsgang (2002)], de Günter Grass. O escritor alemão atualiza também a discussão sobre a submersa permanência dos ideias nacional-socialistas e antissemitas na Alemanha pós-guerra, as quais acabam emergindo em gerações vindouras, uma vez que “a rememoração, que ocorre no plano individual, através de critérios diversos seleciona, organiza e sistematiza lembranças daquilo que foi vivenciado” (Umbach, 2010, p. 110). A partir desta ideia, passamos a imaginar uma concepção da escrita contemporânea tal qual uma atividade de representar um momento concomitante à sua execução, porém que dele se desprende por não encontrar local para sua identificação e adaptação. Tal revisitação implica numa reavaliação dos acontecimentos, colocando-os em dúvida e realizando novos debates quanto à História contada pelos vencedores. Sendo assim, podemos tomar tal escrita como espaço de debate das ocorrências que cercam os autores, de modo a levar em consideração variados pontos de vista. A partir de rememorações de sua mãe acerca do naufrágio do navio de refugiados alemães MV Wilhelm Gustloff ao final da Segunda Guerra Mundial, o personagem-narrador Paul Pokriefke procura compreender como seu filho acaba por ponderar a ideologia nazista. Para isso, o escritor lê e expõe a história como um caranguejo, o qual parece andar de lado, mas que avança com rapidez. A narrativa memorial de sua mãe, Ursula Pokriefke, pode ser definida como “uma negociação entre uma certa representação do passado e um horizonte de espera” (Candau, 2012, p. 89). Esta “certa representação do passado” da personagem acaba por produzir um caudaloso território em que o revisionismo do nazismo se coloca em atividade através do neto Konrad, de forma que águas passadas retornam ao fluxo habitual da sociedade alemã, contrariando a ideia de que o naufrágio do navio Wilhelm Gustloff havia sepultado também as ideias do III Reich no fundo do Mar Báltico.

IVB.5 (Des)territorialização e narrativa autobiográfica: deslocamentos e ressignificação do passado na obra Transplante de menina, de Tatiana Belinky 
Simone Luciano Vargas, simonelvargas@gmail.com

No século XX, houve grande mobilidade de pessoas que buscaram refúgio em outros países devido às perseguições por sua religião e etnia. Assim, a migração tornou-se a alternativa de sobrevivência. Dentre os países que acolhiam os refugiados, o Brasil se apresentou como uma opção viável, pois, em fase de desenvolvimento, prometia aos imigrantes terra, trabalho e liberdade de credo. Até o momento da viagem, seria previsível a realização de um planejamento; nesse momento se busca o máximo de informações do local para o qual ocorreria o deslocamento. Não raro se criavam expectativas sobre o espaço e os habitantes deste novo local, que poderiam condizer ou não com o esperado. Dentre esses, Tatiana Belinky foi uma das refugiadas, na época com 10 anos, que se instalou em definitivo no país, formando aqui uma família e carreira profissional. Em Transplante de menina, a partir de suas memórias, a escritora ressignifica o processo de desterritorialização a que foi submetida ao atravessar o oceano Atlântico em 1929. No romance autobiográfico, o navio General Mitre se apresenta como um espaço extraterritorial, um entremeio que liga duas margens: a Letônia e o Brasil. Nesse espaço, o qual permaneceu por 22 dias, Belinky socializou com outros migrantes que, como sua família, buscavam um lugar seguro para recomeçar uma nova vida. Durante o percurso, passaram por alguns incidentes de viagem e estranhamentos culturais. A chegada ao Rio de Janeiro também proporcionou novas experiências a partir do contato com aspectos brasileiros, os quais ela comparou com a terra da Cocanha: espaço mítico presente nas fábulas europeias. Belinky escreveu Transplante de menina aos 70 anos, sendo sua narrativa memorialística permeada pela percepção da mulher adulta, já territorializada, que busca no passado o olhar infantil sobre os acontecimentos. Nestes termos, a presente comunicação se propõe à análise da obra e constata que esse distanciamento temporal permitiu não somente a ressignificação do passado, mas a construção de uma identidade narrativa.

V. 11 de outubro, das 11h30min às 13h — LOCAL: SALA 120 DO PPG

V.1 Identidade porvir: a viagem como construção do eu e do nós, em Maleita, de Lúcio Cardoso 
Alberto dos Santos Paz Filho, luis.alberto@acad.pucrs.br

Lúcio Cardoso é um autor que nunca passou despercebido pela crítica. Já em seu romance de estreia, Maleita, publicado em 1934, notava-se uma linguagem simbólica complexa, além de certa atração por temas obscuros. Sob essa perspectiva, este estudo almeja, por um lado, resgatar a memória de Lúcio e de sua vasta produção artística, e por outro, lançar um olhar em seu primeiro romance, visando à compreensão de alguns elementos textuais que atravessam o conjunto de suas obras. Dessa forma, este trabalho tem por objetivo analisar de que maneira o deslocamento espacial das personagens representa, narrativamente, uma transformação tanto cultural, no que diz respeito à cidade a ser descoberta e (re)construída, quanto pessoal, visto que as personagens precisam adaptar-se a um novo e inóspito ambiente. Aqui abre-se uma via de mão dupla: essa adaptação precisa ser feita tanto pelos recém chegados a Pirapora (cidade onde é ambientado o romance) em relação ao local pobre e “selvagem”, quanto pelos trabalhadores que lá habitam em relação aos “estrangeiros”. Por isso, questiona-se: a viagem representada no romance pode ser vista como uma forma de se alcançar um processo de desenvolvimento mais pessoal? De acordo com Wellek e Warren (1955), a casa em que um homem vive é um prolongamento deste. Descrevê-la é descrever o seu ocupante. Sendo assim, penetrar naquela Pirapora que estava por emergir seria também adentrar nos covis da alma daquelas personagens. Para efetuar a análise proposta, o estudo será dividido em dois momentos: primeiro, será feita a análise do romance com foco no desenvolvimento das personagens no tocante ao transcurso realizado por elas como forma de migração e dominação - será examinado de que modo a configuração do “progresso” tecnológico e o acesso ao conhecimento são utilizados como meios de controle. É válido ressaltar o aspecto invasivo a ser observado: os trabalhadores locais sentem-se ameaçados pela presença dos recém chegados, deixando claro que, embora estejam dispostos a erguer Pirapora, não se sentem confortáveis com a ideia de um “estrangeiro” assumindo o comando. Para compreender esse movimento, pensa-se Clifford (2000), segundo o qual sem dúvidas os povos sempre foram mais móveis e as culturas menos fixas do que as abordagens clássicas e tipologizantes que a antropologia clássica sugere. Por fim, será levantada uma breve fortuna crítica para examinar como o romance foi lido e compreendido à época de seu lançamento, bem como ao longo do tempo, com renovadas pesquisas.

V.2 Estética da viagem, poética do perder-se: apontamentos sobre Lorde, de João Gilberto Noll
Tamara dos Santos, tamara.santos.001@acad.pucrs.br

A partir das reflexões de Michel Onfray (2009) sobre o valor da viagem para a concepção da filosofia e também para a concepção da poética, na qual o ato de viajar suscita uma “ética lúdica” do viajante, que está em constante movimento durante suas idas e vindas, e reforça o valor da individualidade do viajante, em contraponto com os valores dos sedentários, que valorizam fixar raízes na cidade e manter a estabilidade do todo da urbe. Entre nomadismo e sedentarismo, para Onfray, o perder-se configura-se como uma forma de constante e dinâmica de constituição do sujeito. Nesse sentido, a partir do enfoque sobre a viagem e da figura do viajante, que seria alguém que recusa o tempo social comum dos espaços nômades, como a cidade, e vive a partir de um tempo singular, do sujeito, que define suas vontades e desejos, em constante movimento, pretendemos analisar a narrativa Lorde (2004), de João Gilberto Noll, romance que serve como amostra significativa do procedimento narrativo do autor, em que há uma “narrativa da sensação” e pulsões que movem as dinâmicas dos personagens. O romance começa com o personagem masculino sem nome, constante na narrativa do autor, no momento em que ele acabou de chegar no aeroporto de Heathrow, em Londres, e como é característico da narrativa de Noll, o personagem se perde e se desvia, compondo a si mesmo nessa dinâmica do experiencial, ao mesmo tempo em que há um constante contraponto entre ser um brasileiro que representa seu país em terra estrangeira. O desenvolver da narrativa deixa resquícios e imprecisões, que fazem parte da dinâmica ficcional proposta pelo autor, a partir das oscilações, e em busca de realizar uma suposta missão, o narrador se desloca, ainda que não saiba exatamente dizer do que se trata sua missão, que vai se esclarecendo no tecer-se da narrativa. Assim, pretendemos escolher passagens significativas deste livro para entender qual é o valor da viagem dentro do romance.

V.3 Viagens rosianas: uma reflexão dialética sobre Grande Sertão: Veredas
Suellen Cordovil da Silva, sue_ellen11@yahoo.com.br

Compreendemos por meio do teórico Antonio Candido (1973) que existe uma dualidade de pensamento representada na obra rosiana, pois ao longo da obra estabelece-se condições antagônicas entre os homens e instituições. Em Grande Sertão: Veredas (1956) observamos um desencadeamento de uma diversidade de viagens, como, por exemplo a transposição do Liso do Sussuarão; “Agora, o senhor saiba qual era esse o meu projeto: eu ia traspassar o Liso do Suçuarão!”(ROSA, 1956, p. 492). Porém, notamos uma certa problemática de dualidade nestas travessias de viagens dos personagens que podemos verificar a condição de Reinaldo ou Diadorim, filha de Joca Ramiro e sua a amizade ambígua de Riobaldo. Conforme no trecho: “Pois então: o meu nome, verdadeiro, é Diadorim. Guarda êste meu segrêdo. Sempre, quando sozinhos a gente estiver, é de Diadorim que você deve de me chamar, digo e peço, Riobaldo [...]” (ROSA, 1956, p. 156). Essa amizade estabelecida entre Riobaldo e Diadorim relembra o estado dual da personagem e sua condição de poder entre os jagunços. Para Riobaldo, Diadorim é real versus irreal “Diadorim é a minha neblina...” (ROSA, 1956, p. 26); santa versus demônio Diadorim vigiou aquelas diferenças: ele temeu; temeu por minha salvação, a minha perdição. Ou foi que minha Nossa Senhora da Abadia mandou que assim tivesse de ser?” (ROSA, 1956, p. 457) ou donzela versus guerreiro “O Reinaldo é valente como mais valente, sertanejo supro. E danado jagunço...” (ROSA, 1956, p. 555). Esses trechos da obra rosiana retomam problemática da travessia de entre-lugares na narrativa. Diadorim era uma mulher, condicionada pela cultura jagunça no enredo, como um homem, pois não poderia sobreviver entre eles se tivesse roupas ou comportamentos femininos. Ela se comportava como um homem, mas ela tinha algumas sensibilidades e características femininas apontadas sutilmente pelo discurso de Riobaldo. Porém, ele não entendia como teria um desejo por um jagunço no caso, Reinaldo e/ou Diadorim, juntamente, pelo contexto cultural construído pela lei jagunçada. Com isso, Guimarães Rosa como viajante validado por sua profissão de diplomata quebra os paradigmas que condicionavam somente ao homem o poder e características masculinas estereotipadas.

V.4 Escravidão, migração e trauma cultural em Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves 
Vanessa Hack Gatteli, vanessagatteli@gmail.com

Este trabalho faz uma reflexão inicial acerca do trauma cultural no romance Um defeito de cor (2006), de Ana Maria Gonçalves. Segundo Alexander (2012), o trauma cultural se dá quando ocorre uma fragmentação da noção de comunidade. Kehinde, protagonista de Um defeito de cor, é sequestrada ainda criança em Uidá (África) para virar escrava no Brasil. Ela passa por vários traumas: uma migração forçada, a perda de vários familiares, estupro. No entanto, o foco da análise é a escravidão enquanto trauma cultural, principalmente pelo aspecto da migração forçada e de suas implicações, como questões linguísticas, culturais e religiosas. O enredo do romance é complexo, pois além da trajetória pessoal da personagem, há o painel histórico em que a narrativa está inserida. Kehinde, ainda adolescente, tem um filho que viria a morrer ainda criança, em um trágico acidente. Ela então se muda com sua Sinhá para Salvador e, com o tempo, consegue sua carta de alforria. Ela se relacionar com um homem branco com quem tem seu segundo filho, Omotunde, que seria anos mais tarde vendido como escravo pelo próprio pai. A personagem procura anos pelo filho, indo até o que hoje seriam São Paulo e Rio Janeiro atrás do menino, resolvendo por fim voltar para a África, deixando pessoas de confiança a responsabilidade da busca por Omotunde. Lá, ela reconstrói sua vida, se tornando uma grande comerciante e tendo outros filhos. Já com uma idade muito avançada, Kehinde resolve voltar para o Brasil para finalmente reencontrar seu filho, pois descobrira que pistas haviam de se perdido no caminho do Brasil para a África. Já idosa e cega, faz novamente a viagem da África para o Brasil e descobrimos que a história é ditada no navio, direcionada para o filho. A história termina com o navio chegando à costa do Brasil, mas não sabemos se a personagem-narradora sobrevive para desembarcar e encontrar o filho. Nessas idas e vidas, a personagem se envolve em diferentes revoltas, a maior delas sendo aquela que ficaria conhecida como Revolta dos Malês, organizada por escravos de origem islâmica. Em outra esfera, a personagem também busca ajuda e inspiração em diferentes religiões africanas. Esses esforços que a personagem faz de se arriscar em uma revolução, de gastar anos de sua vida tentando se tornar uma Vodúnsi (espécie de sacerdotisa Vodún) são algumas das “reivindicações institucionais” (Alexander, 2012) de que a personagem lança mão no processo do trauma cultural.

VIA. 11 de outubro, das 16h às 17h30min — LOCAL: SALA 120 DO PPG

VIA.1 Apenas um rapaz latino-americano: a experiência do migrante nordestino na canção de Belchior
Nathalia Pinto, nathalia.pinto@lasalle.org.br

O maior dos movimentos de migração interna no Brasil parte da região Nordeste. O flagelo da seca e as consequentes mazelas sociais que se abatem sobre os nordestinos fazem com que este seja, desde que se tem notícia, um povo que parte. O Sudeste é a região que mais recebeu esses migrantes, pois foi, a partir da década de 1940, alvo de um massivo processo de industrialização, o que fez surgir a demanda por mão de obra “barata”. De acordo com dados de 2010, ainda vivem aproximadamente 4 milhões de nordestinos em São Paulo. A literatura, o cinema e a canção popular do século XX registraram e debateram esse fenômeno amplamente. A moderna cultura nordestina se constitui, em grande medida, como a narrativa de viagem do migrante. A obra do cantor e compositor cearense Belchior é um exemplo de como a canção popular descreveu sob o olhar do viajante a experiência migratória. A própria condição de artista nordestino exige a partida, uma vez que, nos anos 1970, quando Belchior inicia a carreira, toda a indústria cultural brasileira se concentra no Sudeste e, assim, “a vida de viajante”, outrora cantada por Luiz Gonzaga, se torna um dos temas fundamentais da densa obra do compositor cearense. Luiz Gonzaga, inclusive, é o primeiro de uma grande leva de músicos nordestinos que, a partir da década de 1940, farão sucesso no “Sul” com canções que falam diretamente ao migrante, explorando a “cor local” do sertão, a saudade, o deslocamento do “matuto” e as dificuldades que enfrenta na cidade. O tema da viagem surge, assim, intrinsecamente ligado à metalinguagem, ao fazer artístico, às contingências impostas pelo capitalismo: é preciso partir para ser artista. O eu-lírico das canções de Belchior se apresenta como um deslocado, um migrante que não tem perspectivas no sertão e que, no Sudeste, sofre com o preconceito, a falta de oportunidades, a solidão, as relações interpessoais fugazes. Ao mesmo tempo, esse deslocamento do sertão rural e arcaico para a cidade moderna e cosmopolita, reflete certo fascínio que os signos de mercado exercem sobre os jovens sertanejos. Esse trabalho pretende, assim, analisar a obra de Belchior, compreendendo de que formas a migração é abordada em sua produção artística, que teve forte impacto e importância na tão famigerada “linha evolutiva da canção popular brasileira”.

VIA.2 Sinais fechados: a comunidade inconfessável (De Belchior a Foucault)
Daniel de Oliveira Gomes, setepratas@hotmail.com

Buscamos uma “ilha política” onde, refugiados, o músico Belchior e o filósofo Foucault se achassem. Cada vez mais, artistas como Belchior estão a refazer sentido nas travessias do presente (assim como intelectuais como Blanchot e Foucault). Quer seja porque produziam cartografias como se fizessem dissecções de seu tempo em contextos mais claros de repressão, e elas volvem hoje mais que nunca necessárias, quer seja porque continuam ainda a fornecer novos instrumentos de crítica aos naufrágios presentes, sobretudo políticas. Tentamos notar uma resistência subjetiva do último Belchior e sua migração para o Uruguay. Ela encaminha àquilo que poria Peter Pal Pélbart acerca das reflexões do último Foucault como o dado de uma experiência (im)pessoal? Guilherme Castelo Branco dizia, ao investigar as lutas pela autonomia em Foucault, que o problema que animou o último Foucault foi - oposto às suas fases iniciais - estudar o papel das resistências íntimas na complexa trama com o presente, quando o autor passou a considerar, não tanto mais as grandes articulações institucionais que formam o poder, mas sim a rede onde “(...) desde então, Foucault passa a considerar que as lutas de resistência ao poder devem ser entendidas como sendo aquelas que visam a defesa da liberdade.” (CASTELO BRANCO, G. Imagens de Foucault e Deleuze. p.178.). E essa noção de defesa da liberdade é muito ampla, serve-nos para raciocinar sobre esse estranho desespero do jornalismo hegemônico do país que, após tanta amnésia com relação ao artista, passou subitamente a seguir os dramas virtuais dos blogs e das navegações das redes sociais, para “caçar” o compositor como um refugiado da imprensa.

VIA.3 Viagem e memória em Hiroshima, meu amor: confluências entre cinema, literatura e música
Cinara Ferreira e Carlos Walter Soares, cinara.pavani@ufrgs.br e carloswasoares@gmail.com

O cinema é uma linguagem com regras e convenções inerentes à dinâmica particular da produção da imagem (a câmera, a tela, a luz, os cortes, o ritmo, o figurino, o cenário, o som). Por sua natureza dialógica, a sétima arte aproxima-se de outras linguagens, entre as quais a da literatura e a da música. Com a primeira, compartilha elementos como o enredo, o diálogo, a narração e o desenvolvimento no tempo e no espaço. A música, no cinema, é um recurso expressivo que enfatiza atmosferas psicológicas e materializa o ritmo da narrativa fílmica, com sua presença ou ausência. O objetivo deste trabalho é analisar elementos da literatura e da música em Hiroshima, meu amor na composição dos conflitos representados em torno da viagem e da memória instaurada a partir do deslocamento. Dirigido por Alain Resnais, com roteiro de Marguerite Duras, Hiroshima, meu amor, de 1959, propõe uma linguagem espontânea e com técnicas inovadoras para época. Inicialmente, o filme é pensado como um documentário, no entanto, insatisfeito com o resultado, Resnais convida Marguerite Duras para escrever o roteiro, que tem conexões diretas com a literatura da autora. Tendo como cenário Hiroshima, o enredo intercala imagens das sequelas da bomba atômica lançada na cidade em 1945 e o caso de amor entre uma atriz francesa e um arquiteto japonês. A atriz viaja para o Japão para filmar uma história sobre a paz. Nessa viagem, ocorre mais do que um deslocamento geográfico, pois a relação amorosa entre os dois faz emergir as memórias traumáticas de um antigo e proibido amor vivido por ela em Nevers, sua cidade natal, na França ocupada pelos nazistas. Filmado em preto e branco, o filme se constitui de contrastes que remetem às dicotomias constitutivas da trama: memória e esquecimento, passado e presente, guerra e paz, amor e ódio, silêncio e som. Nesse sentido, a música, composta por Giovanni Fusco e Georges Delerue, pontua os contrastes de forma pungente funcionando como um elemento chave para a expressividade do drama. Hiroshima, meu amor conduz para uma poética reflexão sobre a experiência traumática da segunda guerra e a necessidade de relatar o trauma para sobreviver.

VIA.4 O espaço e o movimento do Rio em Danúbio (2008), de Claudio Magris
Fidelainy Sousa, fidelainys@gmail.com

Com este trabalho pretendo investigar os aspectos sobre o movimento e o espaço da viagem presentes em Danúbio, de Claudio Magris (2008), considerando que a literatura é receptora das mudanças dos espaços, mas também é influenciadora de elementos para tais mudanças. A proposta é analisar o trânsito entre o rio Danúbio, os sujeitos e espaço que ele transforma, dentro de uma perspectiva pós-moderna, através do pressuposto de que é possível identificar o fluir das águas como passagem. Para articular a imagem do rio como espaço de passagem é preciso afirmar que o fluxo das águas não e de suas nascentes não se prendem em limites geográficos, para perceber que o rio Danúbio é a passagem livre entre os países que ele atravessa. As diferenças de línguas e culturas, não são limitações ou mesmo inscrições que marcam identificações de supremacia entre nações, mas são responsáveis por atravessar regiões e países distintos, fato que promove os encontros entre nações e não a compartimentalização delas. A passagem por esse rio também serviu como rotas comerciais para a exploração econômicas, assim como, representou o trânsito ideológico e espacial entre o continente americano e europeu até se tornar o principal responsável pelo acesso entre mundos culturais de realidades inimagináveis. Sendo assim, pretendo redirecionar o lugar do sujeito na sociedade, considerando sua importância na produção literária e na construção social pós-moderna e, ainda, articular a imagem do rio na intenção de afirmar o fluxo das águas como espaço. Para trabalhar tais aspectos é preciso do diálogo teórico entre as perspectivas de Richard Rorty (2006) e Ottmar Ette (2009) sobre o espaço cultural e os estudos Estudos de Transárea, respectivamente. Portanto, pretendo afirmar que o objeto literário é anunciador de movimento, diálogos, ressignificação e apropriação cultural, considerando que a realidade cultural serve de constructo analítico do “eu” e do “outro”, pensado por Bhabha (2012).

VIB 11 de outubro, das 16h às 17h30min — LOCAL: SALA 105

VIB.1 Da dor de perder o que não se tem
Daniel Conte, danielconte@feevale.br

A defesa de um diálogo entre a Literatura e a História tem em Hayden White um dos seus principais expoentes. Ao incursionar pelo terreno da Historiografia e da Literatura Comparada, o teórico norte-americano sublinha a circunscrição do discurso histórico como uma prática eminentemente narrativa. White reflete sobre a necessidade de expansão das fronteiras da História, no que concerne às suas definições e métodos de investigação e escrita, insistindo em que sua tendência tem sido a de manter-se situada no âmbito dos paradigmas literários e científicos do século XIX, quando deveria abrir-se a procedimentos críticos que ocasionaram transformações no âmbito da Literatura, da Arte e da Ciência. E é justamente isso que fazem os escritores que serão discutidos no corpus deste trabalho: conferem maior amplitude aos fatos históricos, revendo e desvelando, por via da ficção, as narrativas manifestadas pelo discurso oficial dos estados brasileiro e timorense, materializando uma outra caligrafia política em forma de “criações intercambiáveis”, se pensarmos aqui em Benjamin Abdala Junior. Consoante White, todas as exposições dos acontecimentos históricos fundamentam-se em narrativas que revelam a coerência, a integridade, a plenitude e a inteireza de uma imagem de vida que é, e só pode ser, imaginária. A reflexão de White sustenta que as relações entre Literatura e História devem considerar o fato de ambas serem formas narrativas, que têm como instrumento comum a linguagem. Nessa ordem, este trabalho se ergue a partir dos reflexos e das máculas da superprodução e do subconsumo que marcaram o dia 24 de outubro de 1929 em Nova York, ocasionando a quebra da bolsa de valores e a grande depressão econômica dos anos seguintes. Esse movimento trouxe consequências que, ainda, figuram nas ficções em língua portuguesa. O crash fortaleceu o papel do Estado nas atividades econômicas e acelerou o fim do liberalismo. Foi desde este movimento econômico que se começou a organizar em terras colonizadas por Portugal, uma elite crioula que atravessou o Atlântico em direção à metrópole em busca de conhecimento formal nas universidades lusitanas. Este trabalho busca evidenciar a figuração desse evento histórico e o tratamento estético que lhe é dado nas obras Órfãos do Eldorado, de Milton Hatoum e Requiem para o navegador solitário, do timorense Luis Cardoso.

VIB.2 Outreidade, Latinidades: a escrita viajante de Erico Verissimo
Nícollas Cayann, nicollascayann@gmail.com

Alicerçado, majoritariamente, nos conceito de Literatura de Viagem o artigo busca estabelecer uma conversa entre a categoria de viajante “Ambassador” de Hulme e Youngs (The Cambridge Companion to Travel Writing) e a terminologia de escritor/diplomata, de Fernanda Peixoto (no artigo Letras y diplomacia en el Brasil: una aproximación en tres tiempos), delineando, assim, o estilo de escritor-viajante de Erico Verissimo. O artigo busca aferir, de forma comparativa, a posição de Erico Verissimo dentro das categorias de escritor-viajante (como Embaixador Cultural), assim como debater a questão da outreidade na ideia de América Latina principalmente naquilo que tange a pluralidade da(s) identidade(s) latino-americana(s). Fazendo uso de uma análise documental e de revisão bibliográfica em seus cernes conceituais, teóricos e históricos, partindo de dados secundários e uma abordagem qualitativa, o objetivo do artigo é através da análise da obra México (1957) de Verissimo, encontrar um balanceamento entre as duas categorias de escritor viajante mencionadas acima e de verificar a narrativa de latinidade(s) em México: narrativa de viagem colocando Erico Verissimo no espelho da outreidade do “eu” latino.

VIB.3 O texto literário como guia de viagem do turista contemporâneo
Jamile Cezar de Moraes,  jamilecezar@gmail.com  

O presente trabalho visa discutir o papel do texto literário compreendido como guia de viagem para o turista contemporâneo. Para tanto, inicialmente, entende-se que o turismo é um fenômeno social e que se constitui por meio das mais diferentes áreas do conhecimento, sendo, na sua essência, interdisciplinar. Já a literatura, é compreendida como uma manifestação artística, que, por meio da palavra escrita, apresenta ao leitor diferentes experiências, as quais têm a capacidade de provocar sensações, sentimentos e reflexões tanto quanto os destinos turísticos visitados. Dessa forma, não é difícil aproximar o turismo das manifestações artísticas e culturais, pelo contrário, essa prática não o reduz, ou inferioriza as manifestações, essa realidade faz com que a experiência turística seja resultado do contato prévio com a literatura, música, dança, despertando no turista o imaginário da paisagem a ser vista, do contato com a língua, arte, gastronomia, história, patrimônios tenha outro valor. Do ponto de vista da literatura, o turista se torna leitor-turista, modificado pela leitura, pela influência da narrativa, da construção do cenário, das personagens, do imaginário despertado pela leitura. Pelo viés do turismo, ele se torna turista-leitor, cuja curiosidade foi ampliada pela leitura da obra literária, intensificando o desejo de viver a experiência da viagem e o contato com o destino turístico. Nessa perspectiva, a escolha pelo destino pode ser influenciada pelo livro que está lendo, pelas indicações de outros leitores e pela curiosidade em compreender como o destino é apresentado pelas obras literárias. Com isso, as viagens ganham um novo olhar, valorizado pela presença do texto literário como guia de viagem, que desperta a curiosidade do turista, não reduzindo o turismo a uma prática consumista e até mesmo vazia, mas, sim, uma experiência sociocultural bastante importante no processo de compreensão e relação com o outro e sua cultura. Como exemplos dessa aproximação, pode-se pensar em autores como Miguel Torga, José Saramago, Machado de Assis, Manuel Bandeira e Luiz Fernando Veríssimo, além de Fernando Pessoa, Carlos Drummond de Andrade e Baudelaire.

VIA.4 Não é possível retornar ao paraíso quando se faz a travessia para o mundano
Raquel Belisario da Silva, raquel.belisario@acad.pucrs.br

Evelyn não está bem na República Democrática Alemã, mas seu companheiro, Adam, vive no paraíso. Então, eles e seus companheiros de travessia partem do lado oriental de Berlim, numa viagem de férias que se torna uma fuga, mas chegam ao outro lado quando este não é mais o outro lado, quando tudo já se transforma em um Estado Alemão politicamente unificado. Como vão tocar suas vidas a partir de então, com as novidades que o mundo capitalista lhes apresenta?  E a que lugar chamarão de lar: a nova casa, onde precisarão aprender a lidar com situações novas, ou a casa de onde vieram, que já foi saqueada e para a qual não há condições de retorno? No mesmo período, Alex não está contente com a vida em Berlim Oriental, enquanto Christiane vive o regime socialista plenamente. Ele esperou – e lutou para - poder viver a abertura ao lado ocidental; no entanto, agora precisa manter de pé as aparências da república que foi seu lar por toda a vida, em nome da saúde de sua mãe. Como ficar, logo agora que é possível sair do lugar? E como recriar artificialmente um paraíso particular para Christiane, quando ele preferiria estar longe dali e, sobretudo, daquelas condições que necessita manter? Atravessar fronteiras ou construí-las; sair do lugar ou permanecer; habitar um novo espaço ou tentar reconstruir um espaço; começar uma nova vida ou manter uma vida a qualquer custo; todas essas e muitas outras dúvidas se apresentam ao aproximarmos as experiências das personagens do livro Adam e Evelyn, de 2013, do escritor Ingo Schulze, e das personagens do filme Adeus, Lenin!, dirigido por Wolfgang Becker, de 2003. Quando a fronteira entre a Alemanha Oriental e a Ocidental deixou de existir, os habitantes dos dois lados tiveram que aprender a conviver com um outroque já não era mais tão outro. Entretanto, antes de partir para essa nova experiência, foi necessário se descolar da vida pregressa; e isso nem sempre foi fácil. Ir ao encontro do mundo ou deixar que ele venha até sua porta talvez não sejam travessias tão diferentes assim.